sábado, outubro 22, 2005

OS TEMPOS DA JUSTIÇA
Os Juizes do Tribunal Judicial de Paços Ferreira já anunciaram que vão fazer greve. São estas as razões invocadas:
"1. falta de adequação e de qualidade do parque judiciário:
Os edifícios dos Tribunais encontram-se em elevado estado de degradação, não oferecendo as mínimas condições para os que neles trabalham e para os cidadãos utentes da justiça. É o que sucede neste Tribunal Judicial da Comarca de Paços de Ferreira, onde existe uma só sala de audiências para três juízos, não existem gabinetes para todos os magistrados, os funcionários de uma das secções de processos (a do 3.º Juízo) estão confinados a um cubículo no qual ainda têm de amontoar os milhares de processos pendentes, existe uma única casa-de-banho em funcionamento, as paredes estão sujas, por não serem pintadas há anos, o mobiliário é de baixa qualidade e encontra-se gasto, não existe ar condicionado nem qualquer sistema de insonorização que evite que no interior do edifício se faça sentir o ruído do tráfego urbano, não existe uma sala de testemunhas, etc. (...).
2. Falta de investimento do Estado na formação contínua dos juízes:
Os juízes, que têm de se manter permanentemente actualizados e de acompanhar as constantes alterações legislativas, têm de adquirir, do seu bolso, os livros jurídicos indispensáveis ao exercício da sua função. Até o traje profissional (a beca) tem de ser adquirido pelos juízes, que não beneficiam de qualquer subsídio de formação nem de despesas de representação (quanto a estas, ao contrário do que sucede com os titulares dos demais órgãos de soberania).
3. Falta de adequação das leis processuais à realidade social:
Os juízes aplicam as leis que são elaboradas pelos órgãos de soberania com competência para tal (Assembleia da República e Governo). A prática judiciária vem revelando, desde há anos, a desadequação das leis processuais que obrigam à fundamentação excessiva das decisões intercalares, à elaboração de constantes e extensos relatórios, à sucessiva repetição, ao longo do processo, da enunciação dos factos essenciais à decisão da causa, à necessidade de ditar para a acta o que já fica documentado em fita magnética (vide o que sucede com os depoimentos de parte em processo civil).
4. Falta de meios para que os juízes possam exercer a função que a Constituição da República Portuguesa lhes atribuiu (que é a de administrarem a justiça em nome do Povo):
Os juízes, para além da função que lhes está atribuída, exercem também a função de dactilógrafos e, quantas as vezes, as de motoristas, utilizando as suas viaturas próprias e suportando do seus bolso as despesas com os combustíveis (vide o que sucede com o serviço de turno, em que os juízes andam de comarca em comarca e, porque a rede de transportes públicos é, as mais das vezes, ineficaz ou inexistente, têm de utilizar os seus veículos, ficando depois longos meses – senão anos! – à espera de receber as ajudas de custo a que têm direito). Os julgamentos têm, com frequência, que ser realizados nos exíguos gabinetes, com claro prejuízo para a publicidade das audiências – e também para os juízes que se vêem privados do mínimo de privacidade e recato no único espaço que lhes está reservado. Não existem assessores, com formação jurídica adequada, que possam exarar os despachos de mero expediente e, assim, libertar os juízes para a decisão dos processos (...).
5. Falta de meios alternativos à resolução judicial dos litígios:
Os tribunais continuam a ser invadidos com bagatelas penais despropositadas, muitas vezes criadas ao abrigo do apoio judiciário, e conflitos civis que poderiam ser evitados se a lei impusesse ao mercado melhores regras de funcionamento, assim ocupando magistrados, advogados, funcionários, peritos, testemunhas, etc., com matérias de somenos importância, por vezes mesmo questões ridículas, causadores de grandes despesas para o Estado.
6. Falta de dignificação do estatuto sócio-profissional dos Juízes:
Os Juízes não vêem o seu estatuto remuneratório ser actualizado desde 1989, tendo-se habituado ao sucessivo incumprimento das promessas do poder político. O Governo, sem diálogo (tanto assim que aprovou as medidas quando decorria o processo de negociação colectiva) entendeu retirar aos juízes os Serviços Sociais do Ministério da Justiça, utilizando argumentos incorrectos e fazendo crer erradamente aos cidadãos que os juízes gozam de um privilégio que é suportado por todos. Os juízes, que não podem exercer qualquer outra actividade profissional remunerada (ao contrário do que sucede com a generalidade dos profissionais) não beneficiam de qualquer subsídio de exclusividade (ao contrário do que sucede com outras classes profissionais (...)".
7. Falta de verdade quanto a questões essenciais da Administração da Justiça:
A alteração das férias judiciais foi apresentada, pelo Governo, como a retirada de um privilégio aos juízes. Esqueceram-se que as férias não eram dos juízes (que no decurso delas continuavam a trabalhar); antes eram um período de suspensão dos prazos e dos actos nos processos não considerados pela lei como urgentes e que contra a alteração se manifestaram, com fundadas razões, todos os organismos representativos de todas as profissões do foro. Os pareceres pedidos pelo Governo, todos no sentido do errado da alteração, foram engavetados e ignorados. O único argumento avançado em favor da medida foi um suposto estudo nunca apresentado e cujos autores e pressupostos se desconhecem. As propostas dos juízes no sentido da eliminação pura e simples do período de paragem técnica dos processos não urgentes foram ignoradas. Os Serviços Sociais do Ministérios da Justiça foram apresentados com um privilégio injustificado dos juízes, quando o certo é que serão mantidos para outras classes profissionais, recorrendo-se para o efeito a argumentos insubsistentes (à semelhança do que sucede com os técnicos de reinserção social, também os juízes têm contacto directo com a população em geral, inclusive com arguidos presos e/ou violentos, quanto mais não seja quando procedem aos seus interrogatórios e se cruzam com eles nos corredores dos tribunais (no Tribunal Judicial da Comarca de Paços de Ferreira é mesmo frequente juízes e arguidos cruzarem-se na única casa-de-banho existente!). Para quando a segurança nos tribunais, aspecto constantemente ignorado pelo Ministério da Justiça? Será que se esquecem que nos tribunais são proferidas diariamente decisões que afectam de forma significativa a vida dos intervenientes processuais? Será que ignoram que já foram praticados actos de violência no interior dos tribunais, inclusive contra magistrados e inclusive com o recurso a armas de fogo? (...)".
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O Juiz Afonso Cabral de Andrade, escreveu o seguinte texto no Portal Verbo Jurídico:
«Olho à minha volta, leio o que por aí se escreve, falo com colegas, e fico com a certeza que o diagnóstico sobre a actual situação dos Tribunais, da Justiça, e do que podemos esperar dos actuais governantes na nossa área está feito (veja-se o artigo intitulado "até quando" do nosso colega Filipe Caroço).
Sugiro pois que se passe de imediato para a questão "o que fazer".
E aqui deparo-me com o maior obstáculo de todos, que não é este governo que temos, nem este primeiro-ministro que nos calhou, nem este ministro da justiça.
O nosso maior problema é a pala.
A pala que nos foi ajustada em frente aos olhos, e que limita o nosso campo de visão ao tampo da nossa secretária.
A pala que visa fazer com que os Juízes trabalhem nas condições quase ridículas em que aceitam trabalhar, com deficit de meios e superavit de processos.
A pala que faz com que apesar disso o Juiz Português típico sinta como sua obrigação incontestável a de dar vazão a 2.000, 3.000 ou 5.000 processos que lhe ponham à frente.
A pala que não nos deixa ver que a expressão "titular de um órgão de Soberania", no nosso caso, é um rótulo vazio.
A pala que não nos deixa perceber que ao aceitar trabalhar em condições degradantes estamos a degradar-nos a nós próprios e ao órgão de soberania Tribunais, como está hoje patentemente à vista.
A pala que nos cega para a evidência do resultado a que todos estes anos de submissão e sacrifício nos conduziram: ser tratados com total falta de respeito por estes governantes, população em geral e comunicação social, falta de respeito agora substituída por hostilidade manifesta.
A pala que não nos deixa ver que o nosso esforço para conjugar qualidade com quantidade com ausência de meios estará sempre votado ao fracasso.
A pala que nos oculta que o único resultado que o nosso esforço trouxe foi o de sermos indirectamente apontados pelo governo como os principais responsáveis pelo mau funcionamento dos Tribunais (férias a mais, privilégios, e outros mimos), e que nos impede de ver que é essa a imagem que o cidadão médio tem de nós.
A pala que só deixando ver os processos, nos impede de ver que a nossa única obrigação é fazer Justiça: que fazer Justiça é decidir bem cada um dos litígios que os cidadãos levam perante nós: que a celeridade processual é obrigação exclusiva de outro orgão de Soberania, através da dotação dos meios materiais e humanos necessários para que os Juízes continuem a julgar bem.
A pala que nos esconde que o nosso esforço e sacrifício para trabalhar sem meios, em vez de exigir condições adequadas sempre foi, é, e cada vez mais será contraproducente.
A pala que recua ligeiramente quando estamos em casa, na rua ou no café, a conversar e a desabafar o nosso cansaço, mas que mal pomos o pé no edifício do Tribunal volta automaticamente a apertar-se à volta da nossa testa.
A pala que ainda não nos deixou ver que a nossa atitude vergada e de resignação redunda em prejuízo dos cidadãos cujos direitos, liberdades e garantias nos compete defender.
A pala que é tão eficaz que consegue esconder-se a ela própria, dando a ilusão de que não está lá. Parece-me evidente pois, por tudo o que já sabemos, que chegou a altura de a tirar.
Há no entanto um enorme obstáculo. É que à custa de tantos anos a trabalhar com uma pala em frente aos olhos, em muitos de nós essa pala já está enraizada no osso.
E quando a tentamos tirar, como acontece agora, verificamos com surpresa que ela não sai.
Infelizmente, em muitos casos, já faz parte da nossa identidade.
Mas hoje, mais do que nunca, a pala é o inimigo.
Ou a conseguimos tirar, ainda que com sacrifício e dor, ou ela vencer-nos-á por completo, diluindo-se em nós.
E aí seremos todos funcionários públicos bem comportados».
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Comentário de Star ao texto que antecede:
«E os Srs. Inspectores? O que é que eles pensam da pala que ajudaram a criar? "Oh Sra. Dra.! 3.000 processos não é muito... eu no meu tempo...". O que é que os Srs. Inspectores pensam do erro crasso, de palmatória, no fundo, da falta de profissionalismo que incutiram nas pessoas. Perguntar-se-á: falta de profissionalismo? Mas trabalhamos tanto... É certo. Isso ninguém pode tirar aos juízes portugueses - trabalham imenso. Mas será tal conduta profissional? O profissionalismo não resultará de um conjunto de factores tais como equilíbrio entre qualidade e quantidade, estrito cumprimento das regras processuais e a própria valorização do seu saber e da sua arte? Quem trabalha das 9.30 às 2 da manhã não valoriza o seu saber, nem a sua arte, nem rentabiliza o imenso investimento pessoal que representa ser juiz. Nestas condições quanto vale UMA HORA de trabalho de um juiz? É fazer as contas. Um juiz de comarca ganha menos numa hora do que qualquer profissional de qualquer arte.Mas tudo tem uma causa e há responsáveis. Durante anos um conjunto de iluminados andou a dizer ao poder político que os juízes aguentavam. E criaram um sistema de inspecções com critérios eivados de cláusulas gerais de diferenciada concretização (a conversa com o delegado da ordem dos advogados da comarca diz tudo...) e sem quaisquer limites, mínimos ou máximos, de produtividade. Temos de aguentar, temos de aguentar... Como a formação do CEJ não prepara os juízes para o absurdo quantitativo da profissão é fácil prever o resultado. O juiz não vê com nitidez os critérios que vão ser utilizados na sua inspecção... mas pelo menos... trabalha até às tantas... e despacha muitos processos. Salvaguarda-se aí.Houve, pois, responsáveis na total desvalorização da profissão. Fiéis à ideia retrógada do "paradigma do juiz" (moço bem comportado filho de agricultor ou de pequeno comerciante, casado com senhora séria, e que não veste de escarlate, que fica em casa a cuidar dos filhos, a pagar a água, a pagar o telefone, a pagar a electricidade e o gás, a ir às compras, a cozinhar, a lavar a roupa e todas as outras coisas mais necessárias ao equilíbrio do lar... de forma a libertar o marido para os seus 600 processos... desculpem? Quantos processos?), prometeram ao poder político o que não podiam dar com base num paradigma inexoravelmente ultrapassado, melhor, esmagado pela realidade. Recentemente um Senhor Conselheiro disse que tinha exercido funções, no seu tempo, num tribunal muito complicado: tinha diligências às segundas feiras durante todo o dia. Sim, aquilo é um ponto final. Um outro Senhor Conselheiro, mais novo, também exerceu funções num juízo muito complicado, de competência especializada cível... com 700 processos... numa altura em que o Código Civil ainda estava cristalizado.Mas o absurdo é que prometeram dar com base no trabalho dos juízes que estão cá em baixo, na primeira instância e, mais grave, sem perguntarem. O resultado só podia ser aquele que os nossos dias retratam. A ingenuidade paga-se cara.Muitos dos juízes que estão na primeira instância e que tiveram a disciplina de inglês no ensino secundário lembrar-se-ão de um tema que naquela disciplina era estudado: "Generation Gap" (abordava, genericamente, as diferenças geracionais e as dificuldades de entendimento entre pais e filhos). Infelizmente a judicatura sofre deste mal. É difícil para os Srs. Juízes mais velhos perceberem o que se passa lá em baixo, na primeira instância.Mas este turbilhão, em que a judicatura se vê envolvida, pode trazer, e já trouxe, sinais positivos. A associação sindical percebeu, finalmente, que a corda não podia esticar mais na primeira instância e partiu para a única forma de luta que lhe resta - os juízes, destaco aqui os de primeira instância e, especialmente, os de competência genérica, trabalham no limite há já alguns anos. E parece que os juízes mais velhos estão finalmente - desembargadores e conselheiros - estão, dizia, finalmente a perceber não só que a realidade é outra, como, e por causa disso, torna-se necessário criar uma nova resposta.Por tudo isto, os juízes devem estar absolutamente unidos na próxima paralisação do exercício de funções que decidiram fazer. Só com firmeza na greve anunciada poderão ser criadas condições para, posterior e internamente, e depois de resolvidos os problemas externos que um governo sem princípios e sem moral criou, se reorganizar a casa da judicatura, de acordo com paradigmas reais palpáveis e actuais...deixando os voluntarismos bacocos para a meia maratona de Lisboa...De qualquer modo, e para terminar, não posso deixar de sublinhar uma frase do comentário do Sr. João Carlos, que sublinho porque dita por quem não é juiz: "Ainda paira, negativamente, o medo das inspecções". Para reflectir».
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Comentário ao mesmo texto de Jose António:
«Sobre a "pala", concordo que é a conduta dos juízes, no dia-a-dia, cumprindo apenas o horário e deixando o sacrifício e escravatura que tem sido o seu paradigma que algo pode mudar na justiça.Mais do que a própria greve, embora esta tenha um significado de extensão considerável.Rogério C. Pereira, no blog Afixe diz isto exactamente.Transcrevo o que na ciberjus está também transcrito e comentado:"A greve dos juízes marcada para a próxima semana aparentemente será uma realidade – triste, grave e sintomática do que está a acontecer no mundo judiciário.Não se pretende neste texto demonstrar a maior ou menor bondade da solução que desembocou na greve, desvalorizando soluções alternativas.O que se pretende é lançar alguma luz sobre o que previsivelmente acontecerá depois da greve.Transcrevo a propósito algumas considerações do Dr. Rogério C. Pereira no blog Afixe:"Só quem não anda pelos tribunais todos os dias é que ainda não reparou que, o verdadeiro problema não é a greve marcada pelos juízes para o próximo dia 26. O verdadeiro problema é a espécie de greve de zelo que alguns juízes vêm fazendo, todos os dias, desde a reabertura dos tribunais, a 15 de Setembro. Essa sim me preocupa.Em rigor, já se notam, diariamente e à saciedade, os efeitos da prática dos comunicados e despachos do cariz do que volto a publicar de seguida. O Governo que resolva o problema que tão sabiamente arranjou, porque este tipo de reacção, para além de justa, era de esperar, como por aqui, em tempo, avisei.(...) Uma nota para melhor enquadrar o comunicado: nos últimos quinze dias, e só nos últimos quinze dias, terminei dois julgamentos depois das 21 horas e, na falta de sala de audiência disponível, pude intervir em três diligências nos gabinetes dos respectivos juízes. Sempre foi assim que "a coisa", ainda que coxa, foi andando. Agora acabou-se. Horário de função pública e mais nada. Sou advogado, nunca tive mais que 12/13 dias úteis de férias, mas não podia concordar mais com a greve de zelo dos magistrados e funcionários judiciais. Contra a demagogia do Governo, o pragmatismo de quem por cá anda todos os dias!"O ilustre blogger acertou na mouche !Qualquer pessoa que conheça razoavelmente o que se passa nos Tribunais sabe que lá se trabalha muito – trabalha-se muito em termos absolutos e trabalha-se muito mais do que é exigível e do que seria necessário se eles estivesse organizados com um mínimo de racionalidade.Os diagnósticos estão feitos há muito e há um razoável consenso generalizado sobre as causas da crise judiciária e sobre as medidas que seriam necessárias para a atalhar.É por todos reconhecido que as condições de funcionamento da justiça estão uma lástima, fruto do desinteresse e do sub-investimento ou mesmo desinvestimento de que foi alvo durante décadas em que a justiça não foi prioridade para nenhuma força política.À medida que se foi degradando, a justiça foi tornando progressivamente a vida dos seus intervenientes num perfeito inferno: Juízes, Procuradores, Advogados, Funcionários, Solicitadores, testemunhas, Peritos, polícias, partes, arguidos e ofendidos, todos sentiram essa degradação, com consequências imediatas a nível da morosidade, e num segundo tempo a nível da qualidade, do rigor, do equilíbrio da decisão, que sofreram e sofrem falhas cada vez mais significativas.Perante a subida arrasadora de processos a reacção dos juízes foi a de trabalharem cada vez mais, multiplicando os seus tempos de trabalho e sacrificando progressivamente tudo o mais, designadamente as suas famílias.Passou a ser um hábito trabalhar à noite, durante os fins de semana e durante uma parte substancial das férias; esses tempos de trabalho foram-se integrando no tempo "útil" de trabalho, ou seja, tornou-se vulgar e corrente trabalhar nessas ocasiões, numa palavra, tornou-se obrigatório esse tempo de trabalho.Rapidamente se constatou que sem esse trabalho o sistema baixaria substancialmente a sua capacidade de resposta – ainda mais, numa altura em que se sabia que o sistema já se tinha degradado mais do que alguma vez tinha acontecido desde que o País chegou à democracia política em 1974.No dealbar do século 21 a justiça portuguesa tinha batido no fundo e os seus juízes levavam uma vida de autêntica escravatura profissional, mas ao menos satisfaziam o seu brio profissional e pensavam que se tornavam credores da admiração geral."Caíram da nuvens" quando compreenderam que o poder político pela boca do Primeiro Ministro e do Ministro da Justiça abertamente punha em causa o seu desempenho e anunciava em tom justicialista que ia "pôr os juízes" a trabalhar, tirando-lhes metade das férias e capitaneando uma campanha mediática demolidora visando o desprestígio da magistratura – bem sabendo que era uma desonestidade equiparar férias judiciais a férias dos juízes; sucederam-se depois vários episódios lamentáveis onde avultou sempre uma posição agressiva e hostil aos juízes por parte dos responsáveis governativos e da maioria parlamentar que sustenta o Governo.Perante isso entenderam os juízes que deixou de haver justificação para o esforço imenso que desenvolviam – o seu sacrifício não só não era reconhecido como chegava a ser alvo de comentários irónicos; assim se gerou muita desmotivação e desalento, ganhando corpo a ideia de que era escusado o sacrifício de noites, fins de semana e férias.Os juízes passaram a cumprir um horário de trabalho racional, o que vai ter como consequência passarmos da morosidade para a hiper-morosidade judicial; os Tribunais têm vindo a abrandar de ritmo e dentro de alguns meses a justiça ficará quase paralisada, seguramente com um desempenho muito inferior ao que tinha até ao Verão passado.A greve decretada para os dias 26 e 27 de Outubro é apenas a ponta do iceberg – o corpo desse iceberg é a prática de zelo que os magistrados adoptaram.Os processos tenderão a acumular-se cada vez mais e o sistema da justiça mais cedo ou mais tarde entrará em panne completa (já anda em panne parcial, com a inédita paralisação da acção executiva, fruto de uma reforma precipitada e desastrada, da responsabilidade de mais do que um executivo).Os juízes estão indignados e as campanhas mediáticas bem como as atitudes governativas hostis não contribuem para atenuar essa indignação.É previsível pois que a prática de zelo iniciada no Verão se venha a estabelecer como regra, com pesadas consequências.Este panorama vai continuar por algum tempo.Provavelmente será um dos primeiros problemas que o próximo Presidente da República vai ter que enfrentar».
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João Carlos, escreveu no Blog Lex Legum:
«Morosidade: Quem é o culpado?
Os problemas da morosidade na justiça não são, de forma alguma, uma novidade, não são de hoje, não são deste Governo, nem do antecedente.
Quase todos, especialmente os políticos, tem apontado um mar imenso de problemas que afectam a celeridade. Disparam para todos os lados, e não se restringem a apontar o dedo a Magistrados e Oficiais de Justiça, sendo estes, talvez, os menores responsáveis. Não fossem eles, e a sua dedicação à "arte", sacrificando de forma irreversível as suas vidas, quer a nível familiar ou particular, a justiça não existiria, pelo menos com a celeridade actual (sendo certo, que a duração média de uma decisão final, transitada em julgado, não é a desejável). Não temo ao afirmar, que a não existirem os indicados sacrifícios, o tempo médio até à obtenção de uma decisão final aumentaria, pelo menos, para o triplo.
Não hajam enganos, sindicatos e associações da área da justiça, mormente SFJ, ASJP e SMMP, sempre se ofereceram para colaborar nas medidas legislativas que visam diminuir a morosidade.
E, infelizmente, os sucessivos governos, pura e simplesmente, fazem "ouvidos de mercador", ignorando esta preciosa ajuda, daqueles que vivem os problemas do dia a dia. Todos os governos querem deixar o seu "toque pessoal", alienando-se dos derradeiros problemas, não prevendo os entraves práticos da aplicação legislativa dos diplomas aprovados. Importante é legislar, bem ou mal, é um mero pró-forma. Importante é anunciar grandes reformas, úteis ou não, logo se verá.
A justiça não se compadece com experiências, os Tribunais não são laboratórios, julgam e decidem eventos da vida, acontecimentos humanos.
Não bastava já, a falta de meios materiais e humanos, etc... ajudar à festa, descem à terra normas jurídicas do outro mundo.
Se há um culpado na morosidade da justiça, esse tem rosto - ainda que ente abstrato (legislador) - e nome... poder político (Governo e AR).
Veja-se, a título de exemplo, a grande reforma (!?) da acção executiva, concretizada pela revisão ao Cód. Proc. Civil operada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, apresentada como inovadora na celeridade e resultados a obter no processo executivo.
Resultado desta reforma: um verdadeiro "pontapé na atmosfera". Apenas recentemente se começaram a ver alguns resultados palpáveis dessa alteração legislativa (2 anos depois).
Até tenho pavor de ver as medidas que se avizinham(!?)
Contudo, não posso deixar passar em claro uma das medidas anunciadas pelo actual executivo, refiro-me ao arquivamento das execuções por custas cujo valor seja inferior a € 400,00. É mais que evidente que esta medida vai retirar milhares de execuções dos Tribunais, reduzindo uma pequena percentagem da pendência. Contudo, a mesma, na minha opinião é uma "faca de dois gumes". Se por um lado, a curtissímo prazo retira dos Tribunais milhares de execuções, por outro vai incentivar os posteriores responsáveis pelo pagamento de custas, ao não cumprimento do seu pagamento, na esperança de uma medida similiar a esta. O resultado é obvio, a médio prazo as execuções por custas até este montante aumentarão significativamente».

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