sábado, dezembro 03, 2005

PARA REFLECTIR

Dando continuidade a posts anteriores, referentes ao tema do díficl relacionamento entre o poder político e o poder judicial, transcreve-se, para reflexão, o discurso proferido pelo Senhor Juiz Conselheiro Joaquim Fonseca Henrique de Matos, no 5º Congresso dos juizes portugueses, realizado entre os dias 6 a 9 de Novembro de 1997:
«I -Dirijo-me a V. Exas, meus Colegas e meus Amigos, neste V Congresso dos Juízes Portugueses, porque, em minha opinião, estes encontros constituem um inestimável espaço de reflexão e creio que nenhum de nós pode furtar-se, seja onde for e seja quando for, a dar conta das suas experiências, das boas, mas também das menos boas, dos seus sonhos e das suas ideias.
Mas também decidi dirigir-me a Vós porque há razões circunstanciais que tornam ainda mais premente esta reflexão conjunta a que estamos a proceder e é imperioso que façamos.
Esta minha intervenção pretende, pois, ser apenas o meu contributo, mais um, para essa mesma reflexão, e, assim sendo, não vou esgotar os diversos temas que irei aflorando, mas tão-só procurar transmitir-lhes a minha visão pessoal dos mesmos.
II - Como é já quase repetitivo afirmar, vivemos num mundo em permanente ebulição e se temos presenciado grandes progressos para a humanidade em todos os domínios da ciência e da técnica, vivemos também num mundo em que as referências, as ideias e os valores se esbatem, são postos de lado, são substituídos ou pura e simplesmente desaparecem.
Por favor não me julguem um pessimista, porque o futuro é o Homem que o constrói e eu, como bem sabem aqueles que me conhecem, acredito no Homem e na sua capacidade de melhorar o mundo.
O que eu quis dizer foi apenas que, como sintetiza Paul Valéry, com o poder divinatório de que apenas o instinto poético dispõe, "Nós civilizações sabemos que somos mortais" e julgo que, presentemente, o Homem já tem consciência de que está a atravessar uma daquelas únicas e raras épocas da História em que tudo é posto em causa, tudo se experimenta, tudo se transforma.
Ora, para nós, Juízes, nestes momentos de transição, as dificuldades são grandes e não só porque a sociedade com que diariamente nos relacionamos no exercício da nossa Judicatura está em constante mutação.
São grandes porque as regras legais, nosso principal instrumento de trabalho, tanto as adjectivos, como as substantivas, são alteradas sem cessar, como que numa ânsia, talvez compreensível, mas nem sempre adequadamente posta em prática, de tudo prever, tudo regular e tudo resolver. São grandes porque os meios humanos e técnicos de apoio, apesar dos esforços feitos por sucessivas equipas governativas e daqueles que estão em curso, são claramente insuficientes.
São grandes ainda porque o nosso papel nessa mesma sociedade e a forma como somos olhados pelos nossos concidadãos varia todos os dias.
III - Quando iniciei a minha carreira, ainda jovem, como o são agora muitos de Vós e com a capacidade de sonhar que é apanágio da juventude e que procuro sempre encontrar na Vossa companhia, por razões de ordem social, é certo, mas também por motivos de ordem política que é indispensável não esquecer, raros eram os casos judiciais que atraíam a atenção generalizada da opinião pública e que tinham uma cobertura noticiosa intensa.
Hoje não é assim. Bem ou mal os Tribunais estão no centro das atenções, mas isso, ao contrário do que sucede com aqueles que constantemente atribuem aos Juízes um grande protagonismo e os criticam por isso, não é, para mim, motivo de preocupação.
O que me preocupa é que muitas vezes as noticias difundidas não são inteiramente correctas ou são mesmo deturpadas e outras vezes geram movimentos de opinião susceptíveis de fazer perigar - ou pelo menos de parecer poderem perigar - a independência dos Juízes.
E isso, atenta a essencialidade da liberdade de informação e daquela independência para o exercício de tão elevada função, é insustentável!
Em minha opinião, para ultrapassar esta fase do relacionamento entre os Juízes e os profissionais da comunicação social, mas sem pôr em causa a liberdade de informação, direito fundamental numa sociedade democrática como a nossa é e deverá ser cada vez mais, é premente que se decida de uma vez por todas enveredar pela criação de um corpo de jornalistas forenses.
Tais profissionais teriam de estar dotados de formação jurídica e caber-lhes-ia fundamentalmente efectuar a cobertura noticiosa dos diversos eventos judiciários que fossem ocorrendo, sendo-lhes imputados especiais deveres de informar de forma correcta e objectiva a opinião pública e para cujas faltas se preveriam as sanções tidas por adequadas.
Esta é, a nosso ver, a única forma de compatibilizar o direito dos cidadãos a serem informados, com o direito a serem correctamente informados e ainda com o direito a terem ao seu dispor Juízes e Tribunais que decidam em consciência e com tranquilidade.
A independência dos Juízes não pode ser posta em causa, devendo ser afirmada bem alto, perante quem quer que seja e sem acinte para ninguém, mas de modo claro e sem a menor tibieza.
IV - Os meios, dizem os economistas, são sempre escassos, mas quando se vivem momentos de transformação acelerada e se está inserido em estruturas de grandes dimensões e com uma necessariamente reduzida capacidade de adaptação dessas mesmas estruturas a tais alterações, os meios são ainda mais escassos.
Não é possível a um Juiz ter o mesmo apoio técnico e humano de que dispunha há vinte anos atrás se o seu serviço aumentou exponencialmente, tanto em quantidade como em diversidade.
E muito menos é de aceitar que, apesar dos esforços dos últimos anos, levados a cabo pelas entidades competentes para obviar a tal estado de coisas, haja secretarias cujo quadro ainda é insuficiente ou cujo preenchimento por imperativo das exigências legais em tal domínio não é tão rápido quanto é desejável e necessário ou em que os Senhores Funcionários Judiciais ainda não disponham de uma razoável formação informática.
Muito já se fez e não se desconhecem as dificuldades em levar a bom termo os sempre complexos processos para a colocação de Funcionários Judiciais.
Cabe ao legislador dar aso a que tais processos possam acelerar-se embora sem afectar os direitos dos cidadãos nos concursos conducentes a essa colocação.
Há, pois, que investir na Justiça e há que investir cada vez mais !
V - Também a inusitada velocidade com que os diplomas legislativos são alterados ou integralmente substituídos por outros, prejudica seriamente a quantidade e a qualidade dos serviços prestados pelos Tribunais aos cidadãos, acarretando um cada vez maior sacrifício aos Juízes. Em especial quando, como sucede em Portugal, as técnicas legislativas nem sempre são as melhores e ainda não se apostou decisivamente na especialização dos Tribunais.
No domínio da contratação pública e no dos processos relativos a acidentes de viação, por exemplo, impunha-se claramente, à semelhança do que vem sucedendo nos restantes países da União Europeia, a criação de novos Tribunais com competência especializada.
VI - Infelizmente, cumpre reconhecê-lo, os Juízes nem sempre têm recebido dos seus concidadãos o respeito e a consideração devidos e a que estávamos habituados, mas estou certo de que estamos também aqui numa fase transitória e que rapidamente ultrapassaremos esta forma menos feliz, como por vezes, se olha para a Magistratura.
Efectivamente, a exposição pública dos Juízes, cujas atitudes, profissionais ou de índole pessoal, dão actualmente lugar às mais diversas interpretações e aos mais variados comentários seja de quem for, aliado ao facto de os Juízes serem agora encarados como homens, que são, iguais aos outros, que também são, tendo como que descido do pedestal em que - por razões histórico-politicas ligadas ao alto múnus da sua função - estavam colocados, provocou como que uma descompressão junto dos cidadãos que se sentem livres de exercer o seu direito de crítica e não se coíbem de o fazer, a maior parte das vezes, aliás, de forma muito exagerada e quase sempre infundada.
Também a crise social e axiológica em que vivemos mergulhados - que faz com que sejam os mais diversos os sentimentos de justiça nas várias camadas da população, seja em função da sua cultura, seja em razão da sua idade ou sexo, seja ainda em consequência da diversidade dos meios económico-sociais e até geográficos em que se inserem - impede que as decisões judiciais sejam aceites sem reservas por todos os cidadãos e potencia a feitura de criticas àquelas decisões.
De igual modo, o desconhecimento da quantidade e dificuldade do trabalho com que os Juízes hoje deparam e as insuficiências de meios humanos e técnicos ao seu dispor, que faz com que sistematicamente a morosidade da Justiça lhes seja imputada, provoca um certo mal-estar dos portugueses em relação aos seus Tribunais.
Finalmente, também a exploração torpe do sentimento de revolta dos particulares que intervêm como partes nos processos ou dos seus familiares por certos órgãos de comunicação, que, absolvido um arguido se aprestam a dirigir-se à vítima e aos seus acólitos para os ouvir verberar contra a injustiça da decisão, ou que, condenado um outro arguido, se apressam a ouvi-lo e aos seus familiares para que possam clamar a sua inocência, também tal exploração, como dizíamos, contribui para uma certa quebra de confiança da população no Poder Judicial, personificado pelos Juízes.
Vll - Por tudo isto, e provavelmente ainda em razão de interesses menos claros que conseguem fazer-se ouvir através de certa comunicação social, surgiu a actual e aparente crise de legitimação do poder judicial.
Surpreendentemente, quando se esperava dos titulares dos restantes órgãos de soberania, uma postura de grande cautela e compreensível apoio no ultrapassar desse estado de coisas, o legislador constitucional resolveu alterar as regras de composição do Conselho Superior da Magistratura, em detrimento dos Juízes.
Essa alteração é tanto mais inexplicável quanto, em Portugal, se havia conseguido conciliar o que se considerava inconciliável, isto é, que no Conselho Superior da Magistratura existissem simultaneamente duas maiorias, uma maioria de membros designados pelos restantes Órgãos de Soberania e uma maioria de Juízes.
Tal solução era indiscutivelmente merecedora do nosso aplauso e o seu afastamento deixa-me particularmente sentido por três razões.
Por um lado, porque tive a oportunidade e a honra de participar, em 1982, com alguns Ilustres Colegas, que, tal como eu próprio, eram membros da Direcção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, na discussão da solução, que nessa época teve consagração constitucional, com os membros do Governo e os parlamentares da altura. E, designadamente, com o actual Presidente da Assembleia da República que, com o brilho que o caracteriza, acabou por dar a redacção final ao artigo 220º da Constituição da República Portuguesa. Por tudo isso, pude constatar a relevância que então foi concedida aos anseios e à argumentação dos representantes dos Juízes.
Por outro lado, espanta-me e entristece-me que, ao contrário do que .sucedeu em 1982, se tenham feito alterações na nossa Lei Fundamental ao arrepio do entendimento dos Juízes, numa matéria que especialmente lhes diz respeito e que bole com a sua independência.
Por outro lado ainda, o afastamento daquela solução, perdoem-me a sinceridade, causa-me particular desgosto, como democrata que sempre fui e sou e como homem de consensos que sempre procurei ser, porque o referido afastamento se ficou a dever apenas a dois partidos políticos, quando, em 1982, a solução encontrada tinha merecido o apoio de todas as forças partidárias com assento parlamentar.
Enquanto não for possível o retorno à solução agora posta de lado, e pela qual se deve continuar a lutar, há que não esquecer que a nossa Constituição não impede que Sua Excelência o Presidente da República, profundo conhecedor da vida judiciária e personalidade de reconhecida idoneidade moral, quando for caso disso, volte a designar pelo menos um Juiz para o Conselho Superior da Magistratura, permitindo que naquele Órgão se continuem a verificar cumulativamente as duas maiorias a que já aludimos.
Aliás apraz-me deixar aqui registado que, já após aquela alteração, Sua Excelência o Presidente da República, colocado perante a nobreza e a dignidade da atitude do nosso distinto Colega Conselheiro Manuel Nuno Sampaio da Nóvoa que - sendo membro daquele Conselho em virtude de por si ter sido indigitado ao abrigo do artigo 220º da Lei Fundamental na redacção vigente até à última revisão e da mudança por esta introduzido na redacção desse preceito - quis pôr tal cargo à Sua disposição, decidiu reafirmar-lhe a Sua inteira confiança.
VIII - Em tempos Karl Popper afirmou que "Não podemos esperar de uma sociedade democrática que seja mais democrática do que os seus habitantes". Parafraseando aquele eminente filósofo, diria que não podemos esperar da Justiça que seja mais justa do que os seus Juízes.
A nossa responsabilidade é, pois, imensa e temos de tudo fazer para cumprir as nossas obrigações para com os nossos concidadãos.
Esta é a nossa missão!
Este é o nosso dever!
Este é o nosso sonho!
Tenho dito».

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