segunda-feira, outubro 31, 2005

«Há quem diga que, provavelmente, o cidadão médio não se aperceberá do alcance de uma greve nos tribunais.
Se tiver um assunto judicial em andamento ou tiver necessidade de contactar a secretaria de um tribunal, o facto de encontrar a porta fechada não lhe fará talvez grande impressão.

Recordar-se-á, porventura, das seis vezes que foi adiado um julgamento para o qual estava convocado como testemunha, e dos nove meses que demorou a parturejar uma sentença após o julgamento em que foi parte interessada.

Afinal, naquele dia, o que o esperava era uma fila apontada a um gélido ‘guichet’, numa sala acanhada que melhor funcionaria como arrecadação de um apartamento.

Não abrirá a boca de espanto nem se sentirá particularmente atingido pelo facto de um letreiro de ”greve” se opor à diligência que ali o levou.

E, no entanto, o acontecimento com que, dessa maneira quase indiferente, acabou por tomar contacto, é de extrema relevância para o quadro de vida em que, como cidadão, se movimenta.

Os raciocínios subtis e relativamente impenetráveis dos juristas – acerca do facto de os tribunais serem um órgão de soberania, por um lado; e desse outro facto que é a condição de ”funcionários” (e, portanto, ”trabalhadores da função pública”) dos magistrados, por outro lado – são, com certeza, muito interessantes e contribuem para o esclarecimento da ”natureza jurídica” e da ”licitude” dos actos praticados nestes dias pelos servidores da Justiça.

Mas a vida não se esgota numa qualificação jurídica. Os magistrados – pois são eles que, primordialmente, estão em causa – resolveram utilizar um meio de protesto e de luta (a greve), em defesa de posições de privilégio (acho que ninguém nega isto), e de modo organizado, articulado (como acontece em certas modalidades de greve muito discutidas na jurisprudência), com o propósito inequívoco – e, de resto, declarado – de ”paralisar os tribunais”.

Certo: a adesão maciça dos magistrados ao apelo sindical tem um significado complexo.

Os magistrados têm sido, em muitos casos, injustamente tratados. Muitos dos juízes terão aderido apesar de compreenderem e aprovarem as medidas de restrição contra as quais a greve fora lançada – mas revoltados pelos tons e pelas proporções que assumiu a onda condenatória contra a ”classe”.

O famoso ”corporativismo” tem muitas faces, e o talento sindical consiste em rentabilizá-las todas. Independentemente da complexidade das motivações, no entanto, é facto que os magistrados pararam maciçamente para interromperem, de modo radical, o acesso á justiça, paralisando os seus órgãos.

Estavam no seu direito? Podiam eles dispor assim de um bem que é, constitucionalmente, sacralizado? Discutam os juristas á vontade, cubram-se resmas de papel com argumentos de ”letra” e de ”espírito”.

O facto nu e cru é que fizeram (ou estão fazendo) greve, para paralisarem os tribunais no País (sabe-se lá por quanto tempo), aqueles a quem a comunidade entregou a incumbência de julgar, nos mesmos tribunais, as greves dos outros – dos operários das fábricas, dos empregados dos escritórios, dos funcionários dos ministérios. Quem julgará a greve dos juízes?».

António Monteiro Fernandes, In D.E.

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