Post de Alexandre Franco de Sá, In Caminhos Errantes (blog), de 25.05.2005:
«Há umas semanas - foi, creio, no dia 11 de Maio - assisti a um "Café com Filosofia", organizado pela Associação de Professores de Filosofia, na Galeria de Santa Clara, na outra margem do Mondego. Foi uma excelente conversa, com Vital Moreira, a propósito de um tema cuja facilidade é enganadora: democracia ou demagogia. Fiquei surpreendido por duas coisas. Primeiro, pelo meu acordo com quase tudo o que disse o orador: o carácter inevitavelmente demagógico dos processos plebiscitários e a necessidade de evitar, nas nossas condições actuais, uma queda nesses mesmos processos, a partir de um incremento da legitimidade referendária. É, efectivamente, patente a actual tentação de evocar a vontade e a opinião do "povo anónimo", do povo como massa exposta abertamente às maiores propagandas e manipulações, transformando assim os seus ímpetos repentinos, as suas depressões ou os seus entusiasmos momentâneos num critério de legitimidade ou numa espécie de tribunal para a avaliação do que é justo e correcto. Como dizia Johannes Popitz, a maior ameaça para a democracia pode vir do próprio povo.
Mas, em segundo lugar, surpreendeu-me também aquele que é, a meu ver, o carácter voluntarioso com que Vital Moreira se agarra, como alternativa, a uma contraposição entre a demagogia dos processos referendários e uma democracia representativa, assente em instituições e garantias constitucionais fortes, em discussões parlamentares racionais e em partidos políticos dedicados ao interesse público. Acontece que hoje, ao contrário do que se passava nas origens novecentescas das nossas democracias liberais, nem as instituições são fortes, nem o parlamento é racional, nem os partidos são forças anti-demagógicas. Pelo contrário.
Por um lado, a partir de uma concepção puramente normativista do direito, a lei tornou-se entre nós na mais pura e simples vontade do legislador. E como o legislador pode ser - e, em Portugal, efectivamente é - inteiramente dominado por dois partidos aparentemente antagónicos, mas que são, no essencial, o mesmo, podendo alterar a constituição por simples acordo entre si sempre que o seu interesse particular o exija, tal tem como resultado que a normalidade constitucional se indistinga progressivamente de um estado de excepção determinado pelos partidos que, dominando 2/3 do parlamento, se sucedem rotativamente no governo e na oposição.
Por outro lado, o parlamento há muito que deixou de ser uma sede aberta a uma efectiva discussão, onde cruzam efectivamente argumentos homens razoáveis e educados, sinceramente dispostos a persuadir ou a serem persuadidos. O parlamento é hoje reconhecidamente apenas o lugar onde comissários partidários apresentam uma visão parcial e unilateral que procura não acolher e pensar a argumentação contrária, mas simplesmente forjar - se necessário com as mais óbvias falácias - a imagem mediática da sua derrota.
Por fim, os partidos são não barreiras contra a demagogia, mas certamente um - embora não o único - dos seus lugares privilegiados. A transformação dos partidos em centros de espectáculo e máquinas de propaganda, as relações da maior intimidade com "orgãos de informação" que se transformam em "orgãos de mobilização e manipulação", a sua sustentação de uma sociedade cujo espaço público cada vez mais se constitui como uma sucessão vertiginosa de imagens que se sucedem na televisão, a subordinação das políticas à previsão da popularidade e às exigências de um calendário eleitoral, os interesses particulares que se lhe encontram cada vez mais associados, a sua ocupação crescente por um conjunto de pessoas que não tem qualquer conhecimento do significado do mérito e do trabalho - tudo isso dá testemunho de que os partidos são hoje menos os guardiães da democracia, contra as tentações de demagogia plebiscitária, do que os protagonistas de uma democracia que se poderia diferenciar especificamente pela sua qualidade de "democracia demagógica".
Quando Vital Moreira me disse que a demagogia era, na democracia, comparável a uma constipação, eu objectei-lhe que esta era antes uma doença crónica. Ele respondeu-me, com graça, que se poderia viver bem com doenças crónicas, desde que se regulasse a sua intensidade. A imagem parece-me feliz. Mas parece-me também que esta doença crónica da democracia, a demagogia, não pode escapar hoje à imagem de uma doença galopante e degenerativa. Não querer vê-lo pode ser cómodo. Mas não é certamente o mais sensato».
quinta-feira, outubro 27, 2005
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