«Vivemos numa época que se considera realista e pragmática. Na busca de uma sociedade melhor, não temos tempo a perder com ilusões e mitos. Um elemento central da cultura contemporânea situa-se mesmo na crítica à ingenuidade e idealismo de épocas passadas, que trocavam o bem-estar por abstracções inatingíveis.
Os mitos antigos eram miríade. A honra pessoal, por exemplo, pretendia ser o elemento central da personalidade. Todos aspiravam a ser "pessoas honradas", manter imaculado o carácter na refrega quotidiana; dar a "palavra de honra" era o supremo penhor de fiabilidade. Mas, debaixo dessa aparência, hoje vemos escondidos interesses, favores, privilégios hipócritas. Assumimos que o mito da honra foi pulverizado pela promoção pessoal, busca de interesse próprio, forças de mercado. O realismo exige que se tomem com ironia as juras de integridade e elevação.
Outro campo em que os mitos foram esvaziados é a vida familiar. Antes imperava a utopia da castidade e fidelidade todas as meninas eram puras, todos os casamentos indissolúveis. O nosso realismo vê aí amargas ilusões, pois o ser humano cede sempre a tentações inelutáveis. Temos neste campo uma visão permissiva que diz rejeitar velhas fábulas.
Religião, nobreza, filosofia eram grandes fontes de mitos. A cultura ocidental pretende hoje ser verdadeira e franca, recusando os desbotados enfeites de antigas decepções. Mas não teremos colocado no seu lugar novas aspirações idealistas? Não andaremos nós também embalados em doces devaneios? De facto, ao recusar algumas, fomos cair noutras fantasias de que os nossos antepassados desconfiavam.
O mito da honra foi, no essencial, substituído pelo mito da liberdade, cuja credibilidade é ainda mais fraca. Antigamente, até os ditadores ferozes tinham dificuldades em impor a sua vontade por estritos limites físicos as distâncias eram grandes, a informação esparsa, a influência limitada. Hoje sonhamos com liberdade, mas o Estado benevolente regula por leis, estatutos, impostos e coimas até os detalhes mais ínfimos da existência de todos. Não se pode guiar sem cinto, fumar em recintos fechados, evitar o BI, o NIF, o NIB. Esta situação pode ser considerada justa, confortável, adequada. Mas não livre.
Outro mito actual é o da legitimidade democrática. Com a manipulação da comunicação social, propaganda eleitoral, grupos de pressão e interesses estabelecidos, a nossa lenda da "democracia representativa" é tão ilusória como a do "direito divino dos reis" que a antecedeu. Tal como a justiça do sistema de justiça, a segurança do regime de Segurança Social, a educação do sector educativo. Os nossos tribunais, hospitais, escolas estão tão longe do que acreditamos como outrora os casamentos, conventos e palácios fidalgos se afastavam do ideal apregoado. O consumo soberano e o prazer absoluto são também lendas em que decidimos acreditar fechando os olhos à evidência.
Isto apenas traduz a verdade básica de que o género humano e o corpo social não podem viver sem ideais e convicções. Precisamos de seguir algo nobre e grande que nos inspire e sustente. Cada tempo define-se pelos modelos e valores que exalta. Por isso é curioso notar os contornos da evolução que esses tiveram nas últimas gerações.
Os nossos avós aspiravam a perfeições pessoais. Honra, castidade, temperança e obediência são exigentes virtudes próprias. Nós temos mitos colectivos liberdade, democracia, justiça, desenvolvimento. Isso revela bem como as gerações passadas eram exigentes consigo mesmas e benevolentes com os outros. Falhavam em ambos os propósitos, mas era isso que pretendiam. Nós, pelo contrário, somos indulgentes connosco e severos com todos.
Isto também explica o paradoxo de sermos a primeira sociedade que se despreza radicalmente a si mesma. Como exaltamos ideais comunitários, aí sofremos a desilusão. Até porque a autotolerância não nos prepara para os sacrifícios necessários à assunção desses ideais. Assim falhamos a tal busca da sociedade melhor».
João César das Neves, In DN.
segunda-feira, outubro 31, 2005
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário