quinta-feira, dezembro 01, 2005

Cerca de oito anos depois, parece que nada mudou...

É surpreendente verificar como permanecem incrivelmente actuais muitos dos discursos apresentados no V Congresso dos Juízes, realizado em 1997. Nada, absolutamente nada, parece ter mudado, para melhor! Pelo contrário, o relacionamento entre o poder judicial e o poder político nunca atingiu, como hoje, níveis de fricção tão preocupantes.
Para reflexão, sugiro a leitura de um excerto do excelente discurso de abertura do referido congresso, proferido por Orlando Afonso.

«Na viragem do século, na viragem do milénio, a Justiça portuguesa para o comum dos nossos concidadãos, continua, como há dez anos atrás, afirmámo-lo no III Congresso de Évora, a mover-se à beira do apocalipse, equilibrando-se entre os dois pólos maniqueístas de um bom que não há e de um mau que vai havendo. Equilibrando nos pratos da balança a realidade e a ficção. Na viragem do milénio a atenção e a concepção que a sociedade portuguesa dá e tem da Justiça, diverge, é claro, consoante o seu enquadramento cultural, o grau de interferência dos "media" ou o resultado da utilização que os cidadãos fizeram dos serviços.
Se é certo que para uma parte dos portugueses a Justiça anda ligada a um ideal incoercível que dá por esse nome e que colocados diante da realidade e do seu imaginário, têm para com ela sentimentos ambivalentes, temos que para uma grande parte ela é, apenas, mais um dos serviços do Estado que não servem e que, se possível, Deus o guarde, bem longe das nossas necessidades.
E, se assim se pensa, para lá das sérias razões de queixa dos cidadãos, é porque nunca se fez o discurso ôntico, legitimador do poder judicial, da sua necessidade enquanto elemento essencial caracterizador do Estado de direito, por forma a que as discussões sobre a Justiça, os tribunais e a magistratura possam ser mais do que um banal discorrer de lugares comuns.
Foi feito ultimamente um meritório e criterioso estudo sociológico dos tribunais nas sociedades contemporâneas mas está por fazer, ao nível do cidadão médio, todo um trabalho de esclarecimento e debate sério sobre o sistema judicial português as suas virtudes, os seus defeitos e a sua crise. Por isso, não nos podemos admirar que o conhecimento que uma boa parte dos portugueses tem a respeito da justiça portuguesa, seja a produzida pelos tribunais americanos (via televisão), ou não ultrapasse as inovações epistemológicas sedimentadas com os novos verbos ser-oque-ser ou ter-o-que-ter. Se um cidadão português perguntar, por exemplo, a outro concidadão "o que pensas dos juízes ?" o outro, com toda a probabilidade, lhe responderá "são o que são". O primeiro sorri ao reconhecer esta preciosa sabedoria e concorda dizendo "lá isso são". E logo acrescenta: "o pior é que as sentenças valem o que valem" e o outro meditativo, assenta: "pois valem..." E ambos ficam mais esclarecidos do que quando começaram. Nos programas mediáticos o esclarecimento da opinião pública, segundo esta nova lógica aristotélica à portuguesa, é completo: e, assim, à pergunta "porque é que os tribunais são o que são", obtém-se, normalmente, a inteligente resposta "os tribunais são o que são porque temos os juízes que temos". Como se depreende, é por termos as coisas que temos, que elas são o que são, Nada mais simples.
E toda a renovação judiciária se faz na base destas duas importantes premissas: é preciso mudar porque os tribunais são o que são e temos os juízes que temos. E, assim muda-se a composição do Conselho Superior da Magistratura e o Processo Civil, muda-se a Lei Orgânica do Ministério Público e o Processo Penal, tudo para não termos os tribunais que temos e os juízes não serem o que são. E a mudança continua, inexorável e cíclica levada a efeito por "profetas do direito"; "Rachimburgos"; "Lagsaga" ou outros "Gesetzsprecher" que apresentam fórmulas eficazes para solucionar a crise do sistema judiciário e enquadrar os juízes por forma a que percam esse terrível hábito de exercerem o poder judicante, para mais independente (isto, evidentemente, a darmos crédito a César, Deodoro da Sicília ou a Estrabão que outros mal entendidos não pretendemos estabelecer).
2. Chegou, porém, o momento de se encetar um debate sério, profundo, liberto (independente) sobre o papel dos tribunais e dos juízes na sociedade contemporânea, sobre as relações e as tensões existentes entre o poder político e o poder judicial, sobre a legitimidade e a deslegitimação deste poder, sobre as condições de trabalho nos nossos tribunais, sobre a Justiça que se faz ou não se faz ao cidadão.
Os grandes problemas do Portugal contemporâneo, para além do da cultura que no dizer de António Sérgio, é e continua a ser, nos tempos de hoje, como o foi no passado o problema característico do nosso país e o mais grave dos problemas da sociedade portuguesa, não são distintos dos do resto da Europa, a que dizemos pertencer, de que nos lembramos quando queremos copiar dominós que não nos servem e de que nos esquecemos em termos de análise global dos problemas e das suas soluções (...).
3. Por todo o lado o poder judicial é chamado a intervir, com cada vez mais frequência e a comunicação social disso se faz eco trazendo os juízes para as luzes da ribalta.
Os grandes debates sobre a sociedade, colocam-se, hoje, na maior parte das vezes, aquando da existência de processos judiciais retumbantes - o afundamento do estádio de Furiani; o caso do sangue contaminado para não falar no caso O.J. Simpson nos Estados Unidos. A influência crescente da Justiça na vida colectiva é um dos maiores factos políticos no fim do século XX. Nestas últimas décadas assistiu-se à explosão dos contenciosos obrigando ao crescimento, à multiplicação e à diversificação das jurisdições.
Os juízes são chamados a intervir num cada vez maior número de sectores da vida da sociedade, desde a vida política, à internacional, à económica, à moral, à social. Sendo ainda pontos de referência para o indivíduo perdido, isolado desenraizado que as nossas sociedades produzem e que procura na confrontação com a lei a sua última oportunidade.
A exigência que a sociedade vem fazendo da Justiça é absoluta, geral e universal: tudo é susceptível de ser objecto da justiça; ninguém é intocável, a justiça deve ser aplicável não só às relações inter-individuais homem/mulher, patrão/empregado, govemantes/governados, pais/filhos etc..., às relações colectivas, como igualmente a todos os homens qualquer que seja a sua cultura ou o Estado de acolhimento. Mas, por isso mesmo, porque o cidadão tudo espera da Justiça: não só uma Justiça ilimitada mas uma Justiça total, esta não se pode contentar em dizer o justo, terá, ao mesmo tempo, que educar e decidir, que aproximar-se e guardar distâncias, que conciliar e atalhar, que julgar e comunicar.
Mas não foram os juízes que criaram este surto de judiciarização ou que se tornaram mais interventivos ou protagonistas de eventos conducentes a um nó cego entre a política e a jurisdição. Antes as realidades do Estado social de direito, onde a intervenção pública é instrumento de promoção e igualdade dos cidadãos, tendo assumido maiores complexidades, conduziram a uma modificação do sistema político e do papel dos diversos poderes do Estado, entre os quais se situa o poder judicial.
Com o advento do Estado-providência ddatou-se o papel da jurisdição, com a crise daquele acentuou-se o papel desta.
No jogo social das maiorias e das minorias são frequentes os contrastes entre os direitos sociais e os interesses das maiorias, sobretudo quando o Estado se retrai, o que faz transportar para primeiro plano a jurisdição civil e laboral em função da tutela e da promoção dos direitos sociais e de cidadania. O papel da jurisdição tende a ser, neste contexto, inevitavelmente forte.
Não há aqui, mais uma vez o afirmamos, algum protagonismo da magistratura judicial, antes o reforço do seu papel, em consequência da transformação maioritária do sistema que reduzindo os canais de representação político-institucional dos sujeitos mais débeis faz convergir sobre o poder judicial um acréscimo de pedidos de tutela. (Não foi, por isso, a magistratura judicial que se tornou mais interventiva ou protagonista de eventos conducentes a um nó cego entre a política e a jurisdição).
E a maior relevância dada aos tribunais no contexto sócio-político actual não significa que a política e a jurisdição tenham que disputar, entre si, campos de actuação, de influência ou de poder. Nem tem a jurisdição que resolver, por forma estável, a patologia do sistema. A intervenção judiciária pode e deve reconhecer e remover injustiças e ilegalidades em concreto mas o motor e a primeira garantia do "viver justo" consubstanciam-se em acções e procedimentos completamente estranhos às "salas de audiências".
Por isso o "govemo dos juízes" expressão importada dos Estados Unidos por Édouard Lambert, em l930, não passa de um espectro, ao gosto de Edgar Allan Poe, utilizado por aqueles que ainda não perceberam ou não se quiseram situar no contexto das modernas concepções do Estado de direito.
Na verdade a expressão está na actualidade despida de qualquer conteúdo significante: os juízes não pretendem substituir os deputados, nem governar no lugar dos ministros ou do primeiro-ministro, nem tão pouco proferem arbitrária e conscientemente decisões contra legem.
Os juízes são julgadores, são intérpretes, aplicam as leis não as fazem. Nisto consiste o princípio da separação dos poderes, o qual nem sempre é respeitado por todos os demais poderes do Estado. Os juizes não governam nem legiferam, julgam e esta actividade ocupa-os a tempo inteiro. Há uma única jurisdição que pode intervir no processo legislativo a do Tribunal Constitucional, mas por isso o sistema político soube dotar-se de mecanismos de selecção dos respectivos juízes. Tudo o mais é ficção.
4. A realidade reside no facto que entre o poder político e o poder judicial existem inevitáveis tensões. Não tentemos escamotear os dados do problema e tenhamos a coragem de pôr de lado as reservas mentais que nas relações entre ambos sempre transparecem
Razões históricas, razões filosóficas, razões de oportunidade política, e ausência de razões todas elas têm conduzido, ao longo dos tempos, a magistratura e os tribunais a deterem um poder "en quelque façon nul", no dizer de Montesquieu, que apesar de morto e enterrado, é ressuscitado por uns e por outros, para suporte doutrinário de argumentos que ele próprio enjeitaria se vivesse na viragem do século.
Não tenhamos ilusões, a democracia não sobrevive sem um poder judicial actuante, eficaz e independente. A independência do poder judicial é uma exigência do Estado de direito onde a ideia de controlo, fiscalização e coordenação recíprocos se tomou o centro de gravidade do princípio da separação de poderes. E é ainda uma exigência do Estado de direito porque ao poder judicial compete ser o garante dos direitos humanos fundamentais e ao mesmo tempo o único poder do Estado que pode legitimamente sacrificá-los (nos casos e segundo a forma previamente previstos na lei). A independência do poder judicial é, nesta perspectiva, uma garantia das liberdades dos cidadãos, protegendo-os do poder arbitrário, ou seja, do poder cuja legitimidade não se fundamenta na lei.
Porque detendo o poder judicial o controlo da constitucionalidade, o da legalidade dos actos da administração e a tutela da defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, reordena, desta forma, o equilíbrio político e pode colocar em crise sectores da vida política que sobre ele não mais poderão, legitimamente, exercer a sua fiscalização, tem-se assistido à criação de progressivas sistemáticas e mal disfarçados medidas de controlo da magistratura judicial.
Desde sempre se tem procurado tomar o pulso à magistratura com o argumento: é preciso fazer parar os juízes.
Mas quem é preciso fazer parar?
Os juízes ou os mafiosos que enxameiam a Europa de tráficos internacionais e de circuitos de branqueamento de capitais?
Os juízes ou os grandes delinquentes financeiros que se riem destas querelas e fazem negócios nas costas dos contribuintes?
Os juízes ou os burlões e os corruptos que proliferam na sociedade portuguesa?
Contra a corrupção, o crime organizado, o branqueamento de capitais, os grandes tráficos internacionais, a justiça tem necessidade de mobilizar todos os meios do aparelho de Estado e essa mobilizarão faz-se com concentração de esforços e não com acusações e diminuição das garantias de imparcialidade e independência da magistratura judicial.
Só que os conflitos existentes em Portugal e por toda a Europa entre a magistratura judicial e o poder político são reacções crepusculares de antagonismos mais profundos. É que o direito do Estado que, muitas vezes, mais não é que o direito dos mais fortes, o direito de inúmeros grupos de pressão, alheios aos interesses colectivos e que daquele se servem para fins que pouco têm a ver com o bem comum, deve ceder ao Estado de direito, onde a lei é igual para todos e onde o poder judicial exerce uma função angular, sem que, contudo, pretenda, como se disse, disputar campos de actuação, de influência ou de poder que aos demais órgãos soberanos do Estado competem.
Porque o poder judicial, no Estado de direito, pode, pela dirimência dos conflitos que lhe são colocados, pela tutela dos direitos humanos, pela intervenção social que lhe é exigida, deslocar o centro de gravidade da solução dos problemas, anteriormente colocado sobre os demais poderes do Estado, como pode pôr em "xeque" "eminentes" (vips em linguagem vulgar mediática) personagens da vida económica, administrativa, política, social do país, que sobre aquele não podem exercer directa nem legitimamente o seu controlo, não admira que a preocupação dos poderes da sociedade portuguesa seja a da deslegitimação do poder judicial.
Por isso não se passa uma semana sem que a comunicação social se não refira, em grandes parangonas, a uma qualquer diatribe feita pela maléfica justiça, os anacrónicos tribunais ou os incompetentes juízes, (sobretudo quando o bom réu, julgado injustamente por crime de burla, abuso de confiança, ou qualquer outro contra a economia, homem inteligente e esperto, desejando muitos ser como ele, é personagem socialmente importante, fotogénica e mediática).
5. O problema, hoje, é que a ideia de omnipotência política sem limites não tem mais lugar nos sistemas institucionais existentes na Europa: ninguém goza de prerrogativas face à jurisdição, a política é, hoje, sindicável pelo direito e as soluções das grandes questões da sociedade contemporânea, como por exemplo as ligadas ao ambiente, às inovações científicas e tecnológicas, à informatização e à bioética, passam pela jurisdição e não pelas instituições políticas tradicionais, parlamento, partidos políticos. A garantia política tem vindo a ser substituída pelas garantias jurídicas. O problema da garantia jurídica tomou-se tema fulcral da construção dum mundo onde a garantia política é insuficiente. Daí os esforços do Conselho da Europa na criação de suportes técnicos que permitam a construção de um eficaz sistema jurídico e que permitam a construção e organização de uma magistratura judicial independente. É por isso, também, que a nível internacional se tem pugnado pela resolução dos conflitos através dos tribunais, vejam-se os esforços feitos para a criação de um tribunal para os assuntos da ex Jugoslávia.
Se, por um lado, há que conter a excessiva 'judiciarização" por forma a que a democracia não fique refém do poder judicial, por outro tem de se perceber que a plenitude da democracia e do Estado de direito, só se atinge pela existência de tribunais eficazes e independentes.
Estas novas abrangências têm conduzido, por parte dos poderes instituídos ou fácticos, a um discurso deslegitimador do poder judicial.
6. Em primeiro lugar volta-se a questionar a legitimidade do poder judicial com argumentos eivados de um jacobinismo ingénuo, entendendo-se que a legitimarão em democracia apenas decorre das eleições populares. O que conduziria, em tal tese, que os nossos governos seriam todos ilegítimos.
Se, por um lado, o tradicional sistema de selecção dos juízes fundado, sobretudo, na sua preparação técnico-jurídica, e a sua sujeição à Lei, lhes confere uma legitimarão formal o que é assumido pela nossa Constituição, temos, por outro lado, que ter em consideração uma fonte de legitimarão substancial derivada do facto da exigência constitucional que a tutela dos direitos fundamentais seja exercida por juízes. A expressão constitucional administrar justiça em nome do povo, não tem apenas valor simbólico. Na verdade os tribunais são o único órgão de soberania que se não auto activa. Precisa que "o povo" nas suas diversas formulações o active, o legitime.
A legitimidade do poder judicial decorre directamente da Constituição que o define, determina a sua actividade e o estrutura interiormente, criando-lhe novos mecanismos de legitimarão,
Por isso a defesa da existência e da relevância do papel do Conselho Superior da Magistratura, da sua composição, do modo de selecção dos seus membros, das suas competências e dos seus poderes, não é uma questão corporativa mas antes uma obrigação da sociedade portuguesa que deve estar prevenida contra toda e qualquer tendência de concentração do poder e de simplificação do real.
A defesa da existência de um Conselho Superior da Magistratura nos parâmetros constitucionais da revisão de 1989 tinha este significado:
Que o governo da magistratura judicial era colocado fora do controlo do executivo;
Que se dotava a magistratura de um sistema de governo que evitasse o mandarinato dos juízes e propiciasse um certo grau de coordenação com a representação da soberania popular;
Que o governo da magistratura pudesse ser, ao mesmo tempo, garantia de independência e de não manipulação, contribuindo, por outro lado, para tornar efectivo o chamado "pluralismo institucional" como forma de desenvolvimento e enriquecimento da democracia participativa e não como alternativa à democracia representativa;
Que se dotava o poder judicial de um modelo que permitia aos juízes exercerem as suas competências constitucionais e legais independentemente da vontade política daqueles que, numa certa conjuntura, pudessem ter a maioria;
Que se criava um modelo, constitucionalmente previsto, que funcionasse sem o mínimo de concessão ao jogo das maiorias parlamentares, mas com uma composição democrática que permitisse, não somente a representação do corpo judicial, mas ainda a vontade popular, expressa pelo parlamento.
A actual revisão constitucional alterou, por forma inesperada, imprevisível e arbitrária, (violando o próprio art. 288º da CRP), as regras do jogo democrático abrindo a porta à dependência e aos jogos do poder. Os cidadãos escusam de ficar descansados.
Mas a contracção que se vem fazendo do poder judicial, em Portugal, não se esgota na modificação constitucional da composição do CSM.
7. A melhor forma de evitar que o poder judicial seja um dos reais e legítimos poderes do Estado, freio e contra-pêso dos demais, é deslegitimá-lo, é tomá-lo numa mera ficção.
Deslegitima-se pela manutenção da penúria de meios adstritos aos serviços dos tribunais, tornando-os incómodos, burocratizados, inoperantes e, por isso, ineficazes;
Deslegitima-se criando-se-lhe dependências de toda a espécie, humanas e materiais, as quais são tão ou mais atentatórias da independência do juiz do que a própria dependência política, pois corrompe profundamente a sua função, reduzindo a eficácia da sua acção.
Deslegitima-se pela criação de leis processuais que apenas favorecem os interesses dos outros, e não servem como instrumento de trabalho para aqueles que têm como última missão fazer justiça aos cidadãos que a pedem. Leis processuais eivadas de excessivo garantismo ou desadaptadas da realidade portuguesa ou bloqueadoras da celeridade processual, diluidoras de responsabilidades dos intervenientes processuais e comprometedoras da aplicação de uma boa e "imparcial" Justiça.
Deslegitima-se quando se pretende instalar, na opinião pública, o medo infantil de fantasmas a que chamam prepotência, governo dos juízes ou excessiva juventude;
Deslegitima-se sobrecarregando-se os tribunais com tarefas que lhes são de todo alheias ou subtraindo-lhes funções que só deles são próprias;
Deslegitima-se mantendo as constantes e históricas infra-dotações de toda a ordem, das quais as de carácter cultural não são menos relevantes, tendo em conta a grandeza qualitativa dos novos problemas jurídicos;
Deslegitima-se, criando-se na opinião pública a dúvida da prática, por parte dos Tribunais, duma Justiça tendencialmente justa ou tecnicamente apetrechada dentro do quadro legal, democraticamente querido para o país; criando-se, dolosamente, a opinião de que os juízes estão dispostos a fazer o que bem lhes apetece ou o que lhes vem à "cabeça" como se detivessem incontroláveis poderes discricionários, não estivessem sujeitos às regras mais elementares dos códigos de processo ou não devessem enquadrar os factos nas leis substantivas;
Deslegitima-se fazendo crer que os juízes detém um poder imenso que pode pôr em crise a democracia e o cidadão. Só que os poderes dos juízes estão bem definidos na Constituição e nas leis e a função judicial não se exerce ao sabor das conveniências ou dos índices de audiência e quem põe em crise a democracia e os cidadãos não são os juízes mas os fautores de sistemas económicas marginais e paralelos ou os sócios do clube dos "novos intocáveis" que cumulam riquezas, honras e privilégios e pensam que a igualdade diante da Justiça é para os outros como se aquela não fosse um dos fundamentos de toda e qualquer sociedade evoluída.
8. Panorama sombrio, dirão alguns, mas nem por isso irreal. O negro é também uma das cores da vida e devemos estar atentos para que, nos nossos dias ela não se tome a predominante.
· V Congresso dos Juízes Portugueses deverá ser:
O "forum", o lugar de encontro, da troca de opiniões e ideias, o lugar do debate dos juízes entre si e com os demais juristas e profissionais do foro;
O lugar da discussão pública, onde a presença dos meios de comunicação social se toma instrumento de participação de todos os cidadãos;
O lugar da análise crítica do estado da Justiça em Portugal e da busca das soluções adequadas ao seu eficaz funcionamento;
O lugar onde os juízes devem fazer a sua autocrítica e perceber que parte das anomalias do sistema também a culpa sua se devem;
O lugar onde se deverá fazer Justiça à justiça restituindo-lhe a eficácia que vem perdendo;
O lugar onde se anuncie abertamente que a Justiça deve permanecer sob a alçada dos juízes, pois só a eles compete ser os últimos garantes da honra, da liberdade e da fazenda dos cidadãos.
Encontramo-nos neste Congresso para ter a coragem de perceber que a justiça se administra em nome do povo português, mas que o povo não está satisfeito com a sua justiça, com as dificuldades ao seu acesso, com a inadaptação dos seus meios e dos seus métodos, com a sua lentidão, com a sua constante e inconsequente reforma, com a inflação normativa e a sua ineficácia.
Encontramo-nos neste Congresso para proceder à análise, à denuncia e à busca de soluções para a crise e os desequilíbrios estruturais do sistema judiciário onde são patentes, entre outros factores: as tensões sociais e económicas, a crise cultural e de valores, a criminalidade organizada, o crescente aumento da litigância, a submersão das jurisdições com avalanchas de processos que de ano para ano não param de aumentar, inflação processual como fonte de rendimento de um massificado mercado da advocacia com largas franjas de diminuta qualidade, o preenchimento, por vezes, dos quadros da magistratura judicial com licenciados que têm como meta obterem um emprego certo e remuneração segura.
Grande é o trabalho a desenvolver por todos (magistrados, políticos e outros profissionais forenses) para conjugar na praxis, a independência com a transparência, a eficiência com a responsabilidade.
Seria grave erro escolherem os juízes a via do imobilismo e da conservação do estado de coisas na justiça.
Chegou o momento para os juízes portugueses de aceitarem "o desafio da reflexão" e da autocrítica e de tomarem parte na necessária obra de rescritura do ordenamento judiciário.
Não tem este Congresso que ser mero termómetro que regista a temperatura da opinião de qualquer que seja a maioria política e não tem que adoptar posições tão ambíguas que sirvam para tudo ou tão populares que sirvam para todos.
Cabe-nos a responsabilidade de propôr e exigir reformas consentâneas com a independência da magistratura judicial, com a eficácia dos tribunais com a possibilidade de exercício da judicatura com grande responsabilidade e profissionalismo. A defesa de tais reformas mais não são que a defesa dos mais elementares direitos dos cidadãos».

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