«Justiça, poder e virtudes»
«Ao ler-se, com a devida atenção e respeito, a intervenção do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (PSTJ) no recente Congresso dos Juízes fica-se com a sensação de que a quarta figura do Estado Português tem um entendimento profundamente distorcido acerca do sistema democrático. Que, diga-se de imediato, não significa exactamente o mesmo que Estado de Direito. Porque se, em teoria, pode existir um Estado de Direito sem democracia, a verdade é que não pode haver democracia sem Estado de Direito.
Diz o Senhor PSTJ: "recusando sistematicamente dialogar de igual para igual"; "o diálogo entre órgãos de soberania tem de fazer-se de igual para igual"; "mas os juízes, como todos os titulares dos órgãos de soberania, não aceitam estar sem ser de igual para igual com os restantes órgãos de soberania". A pergunta é a seguinte: por que razão o Presidente do STJ é a quarta figura do Estado e não a primeira (PR), a segunda (PAR) ou a terceira (PM)? O Presidente do STJ não tem, com efeito, um estatuto igual ao do PR, ao do Presidente da Assembleia da República ou ao do Primeiro Ministro. Porque os assistem legitimidades diferentes, sendo, a dos primeiros três, uma legitimidade de tipo ontológico e, a do quarto, somente de tipo técnico.
Com efeito, enquanto as primeiras resultam de um acto originário de delegação directa de soberania do cidadão nos representantes, a segunda tem uma dimensão meramente funcional e técnica. Que esteja inscrita constitucionalmente, isso não altera a sua matriz. Em boa verdade, nas relações entre os órgãos de soberania nem é de igualdade que se deve falar, mas sim da independência que resulta da separação dos poderes. E, mesmo aqui, a independência do poder judicial consiste na liberdade de interpretar e de aplicar a lei. Trata-se, de facto, de uma independência de natureza técnica. Depois, o Senhor PSTJ afirma também o seguinte: "Para corrigir o que está mal (…) bastará que queiram sentar-se connosco à mesma mesa e fazer reformas profundas (…). São necessárias profundas reformas dos Códigos de Processo Civil e Penal, mas com efectiva participação dos magistrados e advogados".
Ora, o que aqui está, preto no branco, é, de novo, uma calamitosa distorção do sistema democrático representativo, já que, depois de reinvindicar igualdade (para o que, na verdade, é desigual) e total independência (quando ela é somente técnica) em relação ao poder político, vem reivindicar o estatuto de colegislador, contrariando, deste modo, precisamente aquilo que reivindica para si próprio, isto é, o princípio da separação dos poderes. De resto, a afirmação de igualdade e de independência é acompanhada de uma curiosa reivindicação feita ao poder político: prestígio e meios. O discurso sobre os meios é, como se sabe, comum a todos os grupos profissionais: se algo não funciona, a culpa é da falta de meios. O erro humano não faz parte do seu vocabulário. E a culpa é sempre instrumental. Mas, para não morrer solteira, lá está o responsável universal: os eleitos. Por sua vez, o discurso sobre o prestígio é ainda mais incompreensível, sabendo-se que o prestígio só se adquire por mérito próprio, nunca por dádiva alheia. A não ser que dele se tenha um conceito restritivo e meramente instrumental. A reforçar este entendimento hipertrófico do poder judicial está esta incursão na própria esfera da subjectividade do poder político legítimo: "o cidadão comum (…) tem sido intencionalmente enganado" pelo poder executivo. "Intencionalmente enganado": trata-se de um juízo que atinge o poder político já num plano subjectivo. Ora o que não parece ser muito correcto, delicado, virtuoso, prudente e responsável – virtudes que se diz faltarem ao poder político quando, supõe-se, abundam na judicatura – é precisamente o discurso crítico de um órgão de soberania sobre um seu "igual", precisamente quando este, em total independência, está a exercer as suas legítimas competências para aperfeiçoar o próprio sistema judicial. O que se insinua é que o poder político, não tratando o poder judicial de igual para igual e não aceitando a sua condição de colegislador, assume, ‘ipso facto’, a responsabilidade integral pelo mau funcionamento do sistema judicial. Isto é: só o explícito reconhecimento da igualdade de estatuto (que não existe), a total independência (que não é possível) e a condição de colegislador (que é ilegítima), ou seja, uma substancial partilha do Poder, pode levar o poder judicial a assumir uma qualquer responsabilidade pelo bom ou pelo mau funcionamento do sistema. Mas essa seria uma autêntica perversão das regras da democracia representativa e o início de uma verdadeira República dos Juízes».
João de Almeida Santos, In Diário Económico, 02/12/205.
Sem comentários:
Enviar um comentário