sábado, dezembro 03, 2005

O QUE SE PASSA?

«É um luxo ter um juiz-desembargador a tirar fotocópias e a coser e descoser processos. Em boa verdade, ao juiz compete apenas a parte decisional. Não entendo como com tantos excedentes na Função Pública não se resolva esta situação que contribuiria e muito para a rapidez e eficácia dos tribunais.
A Justiça continua na ordem do dia. E ainda bem. É preciso aproveitar a onda e ir até ao fundo das questões. Seria lamentável se tudo ficasse agora pela espuma da discussão, pela demagogia dos argumentos ou pela simplificação dos discursos. Têm-se cruzado muitas palavras do ministro, dos sindicatos dos juízes, do Ministério Público e dos funcionários judiciais mas continua a conhecer-se pouco da realidade que constitui o funcionamento dos tribunais. Às vezes até dá a impressão que ninguém quer discutir este tema, para mim dos mais importantes, porque por ele se retrata a eficácia ou a ineficácia da Justiça.
O Público de ontem revela um estudo onde se mostra que "só seis dos 144 juízes cíveis de Portugal são considerados eficientes". O estudo ou o jornal não revelam com clareza as razões desta discrepância. Pelo que sei, cada juiz dos tribunais cíveis tem em média 2000 a 3000 processos em cima da secretária. É uma brutalidade. Como se pode ser eficaz com este volume de processos às costas? Os "grandes clientes" dos tribunais cíveis são os bancos, as seguradoras, os "leasings"’ contra os cidadãos que não cumpriram contratos e criaram dívidas que se reforçam em cada mês que passa. Há muito que ouço dizer que nos tribunais cíveis o problema só se vai resolver no dia em que for aprovado um novo Código do Processo Civil, com um novo paradigma. Um novo Código ajustado às realidades do mundo de hoje. O actual está completamente desajustado e é responsável pela ineficácia e lentidão dos tribunais. Mas não vejo ninguém anunciar a necessidade ou avanço para a produção desse novo Código. Porquê? Há aqui um conformismo inexplicável de todos os intervenientes na prossecução de uma Justiça credibilizada e ao serviço de todos os cidadãos. A morosidade da Justiça também se explica pela forma como se organizam os serviços nos tribunais. Não encontro nenhuma justificação razoável para explicar, por exemplo, que nos tribunais da Relação, tribunais de recurso, de importância e responsabilidade indiscutíveis, o juiz-desembargador não tenha um assessor ou uma secretária ou um funcionário para resolver tarefas que não deviam competir ao juiz. É inacreditável que seja tarefa do juiz descoser os processos, passar horas na máquina fotocopiadora a tirar cópias, "scannar" os argumentos que estão no recurso, a fazer a recolha da doutrina e da jurisprudência sem a ajuda de ninguém. É um luxo ter um juiz-desembargador a tirar fotocópias e a coser e descoser processos. Em boa verdade, ao juiz compete apenas a parte decisional. Não entendo como com tantos excedentes na Função Pública não se resolva esta situação que contribuiria e muito para a rapidez e eficácia dos tribunais. Mas também não ouço as reclamações dos sindicatos dos juízes sobre o assunto. O que se passa?»
Emídio Rangel, In Correio da Manhã, 03/12/2005.

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