domingo, dezembro 24, 2006

Já não é possível julgar Camarate. O Ministério Público, que é o titular (único) da acção penal, entendeu que os factos não apontavam para um atentado mas para um acidente e, em consequência, absteve-se de acusar. Com o decorrer do tempo, o caso prescreveu, conforme decidiu há cerca de três meses o Supremo Tribunal de Justiça.
Procurando evitar que no futuro voltem a ocorrer casos semelhantes, o Partido Socialista propôs que o Parlamento possa constituir-se assistente e, como tal, para além de poder indicar provas e requerer diligências, ter o direito de deduzir uma acusação independente da do Ministério Público e de recorrer de qualquer decisão judicial, mesmo que o Ministério Público o não faça.
Paulo Rangel, Secretário de Estado da Justiça no Governo de Santana Lopes, entende que tal direito contraria tradição do sistema jurídico português e subverte o principio da separação dos poderes, podendo eventualmente configura-se como uma pressão política sobre o tribunal.
Terá razão?
Entregar ao Parlamento o encargo de suprir a acusação do Ministério Público, com base nas conclusões das “Comissão Parlamentares de Inquérito”, talvez não seja a melhor solução para defender uma maior e mais ampla justiça, nos casos em que o Ministério Público se abstém de acusar. Mas o Partido Socialista tem razão quando advoga que deve haver acusação em certos casos: homicídio qualificado contra membros dos órgãos de soberania, do Conselho de Estado, dos governos regionais, autarquias, provedor de Justiça, magistrados, governadores civis, jurados, testemunhas, advogados, agentes das forças de segurança, etc.
Mas porque não recorrer ao juiz e não Parlamento? O entendimento de que o despacho de abstenção de acusar por parte do Ministério Público deve ser judicialmente controlado não é de hoje. Lembro-me de que o advogado e professor de Processo Penal, Dr. José António Barreiros, na altura militante do P.S., convidado a apresentar uma comunicação num Congresso do Ministério Público que teve lugar cerca de 1988, se atreveu a defender a fiscalização judicial do despacho de abstenção do Ministério Público. Foi atacadíssimo. Disse-se que o Ministério Público fiscaliza o juiz mas que o juiz não pode fiscalizar o Ministério Público e alegou-se como fundamento, entre outros, o facto de o Ministério Público ser progressista e o juiz reaccionário. Lembro-me bem pois assisti ao congresso como convidado, na qualidade de presidente da Renovação Sindical dos Juízes Portugueses.
Continuo a entender, como entendeu o Dr. António José Barreiros, que o despacho de abstenção de acusar do Ministério Público deve ser judicialmente fiscalizado e não me parece que a intervenção do juiz ponha em causa a autonomia do Ministério Público.
A via para chegar ao que se pretende é essa, conjugando a lei com a intervenção do juiz. De ideologia não vale a pena falar; estamos a falar de justiça.
Por José Maria Rodrigues da Silva, juiz conselheiro jubilado, In O Primeiro de Janeiro.

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