sábado, janeiro 13, 2007

Súmula vinculante, opção equivocada
Hélio Bicudo
Desde quando tentou-se realizar a frustrada revisão constitucional, na tentativa de estabelecer-se o parlamentarismo, começou a ganhar corpo a idéia de encontrar-se, mediante o efeito vinculante de arrestos emanados do Supremo Tribunal Federal ou de tribunais superiores, à pletora de causas que sobem à decisão da Corte Suprema ou do Superior Tribunal de Justiça, dificultando o seu funcionamento.
Hoje, não obstante tudo, está aí a vigorar, a partir de 19 de março próximo, por força da lei 11.417, de 19 de XII de 2006, a chamada “súmula vinculante”.
Não parece ser essa a melhor solução para o mais rápido deslinde dos processos que, não fora a imposição das súmulas, subissem àqueles tribunais.
Vejamos.
Pretende-se que a relação de confiança Estado-juiz e sociedade não mais vem resistindo com as estruturas fincadas apenas no binômio independência e imparcialidade, estando a exigir também uniformidade nas decisões prolatadas.
De perguntar-se, de saída, a quem aproveita essa “uniformidade”: ao Estado ou à sociedade, tendo-se em vista que a uniformidade, na grande maioria das vezes, impõe, como nos regimes ditatoriais, o esvaziamento da crítica e da criatividade, o que é de suma gravidade, quando se sabe que a ciência do direito não é estática, mas sobretudo dinâmica e que a jurisprudência analisa, apenas, uma tendência em dado lugar e em determinado tempo.
Amarrar-se juízes e tribunais inferiores às determinações jurídicas de um tribunal, é cercear-se a criatividade do domínio do direito. Ao invés de juízes, poderíamos substituí-los por um computador programado em apreciar a lei, esquecidos de que a lei não deve servir a si mesma ou ao Estado, mas, prevalentemente, à pessoa humana que pleiteia em Juízo.
O discurso judicial não é simples raciocínio de lógica formal. As normas jurídicas devem ser permanentemente cotejadas com a realidade social e interpretadas consoante o significado dos acontecimentos que, por sua vez, constituem a causa da relação jurídica.
Como assinala Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 9 ed. 1981), “há verdadeiro fanatismo pelos acórdãos: dentre os freqüentadores dos pretórios são muitos os que se rebelam contra a doutrina; ao passo que rareiam os que ousam discutir um julgado”.
Pela lei do menor esforço, e para assegurar êxito, juízes e advogados, transformam-se em copiadores, arrastam-se pela terra como serpentes.
José Guilherme de Souza, in A Criação Judicial do Direito, Porto Alegre, 1991, também denuncia que se corre o risco de se provocar “distorções na aplicação de padrões esteriotipados a situações flagrantemente atípicas e peculiares; e perenização, não só das aludidas distorções como de obstáculos a uma visão ampla do universo jurídico, aberta para soluções mais humanas e justas”.
O perigo, na verdade, é que ocorra, consciente ou inconscientemente, uma troca de dogma: da lei pelo pensamento dos juízes, ambas formas cruéis de inócua criatividade do operador jurídico, tornando-o incapaz de ver o direito como proposição do ainda não, mas do que pode vir a ser, como possibilidade de renovação do Judiciário que passa pelo direito de ousar, pelo direito de criar, pela faculdade de fazer as normas pulsarem pelos despossuidos a serem aptas para interferir nos novos fatos.
Ou seja, a lógica perversa dogmática continua a mesma, apenas muda-se a premissa maior: ao invés da lei surge a jurisprudência, cristalizada na súmula.
A súmula vinculante não atende a realidade, que não é estática. Como conformá-la ignorando quem são os litigantes, de onde vieram? Que expectativa os anima? Qual a verdade real que orienta os fatos? Como julgar sem ter isso claro? Enganado, o juiz por uma determinação que vem de cima e substitui a lei —e mais do que isso— impede qualquer inovação, porque é ou torna-se uma super-lei.
Em remate, no sistema processual brasileiro, a jurisprudência é ou deve ser apenas indicativa. A súmula vinculante é produto de um autoritarismo que ainda não conseguimos superar. Daí ser inaceitável, mesmo porque o direito ao processo constitui, ele próprio, expressão das liberdades públicas, ineliminável por ato estatal, emane ele de onde emanar, seja do Executivo, seja do Legislativo, seja, como na espécie do Judiciário.
Sexta-feira, 12 de Janeiro de 2007

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