sábado, fevereiro 03, 2007

Discurso do Ministro da Justiça na sessão solene de Abertura do Ano Judicial, no Supremo Tribunal de Justiça, em Lisboa
Nunca como hoje terá sido tão nítida na sociedade portuguesa a percepção da importância do sistema da justiça, quer para a efectividade dos direitos e deveres quer para o desenvolvimento económico e social.
O tema da justiça deixou de ser, como no passado, um tema para juristas e passou a ser um tema para cidadãos.
É um fenómeno de responsabilização e saudável escrutínio público. Um desafio redobrado que agora se coloca a todos os que devem usar as suas competências para influenciar a qualidade da resposta do sistema aos cidadãos e às empresas.
Pela sua parte, consciente das responsabilidades constitucionais que lhe foram atribuídas pelo voto popular, o Governo pôs em marcha uma acção de sentido estratégico para o sector.
Na última década, o sistema judicial vinha sendo sobrecarregado por um processo ininterrupto de crescimento das pendências, a ultrapassar o milhão e meio de processos, numa das mais elevadas capitações europeias.
O primeiro objectivo do plano de descongestionamento dos tribunais aprovado em 2005, e cujos instrumentos legislativos se encontram hoje todos em vigor, foi o de interceptar o processo de crescimento do número de processos pendentes nos tribunais portugueses, aumentando-lhes a capacidade de resposta.
Outro dos objectivos específicos visados foi o de inverter a enorme concentração nas comarcas, e nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, a cujos tribunais vêm afluindo mais de dois terços dos processos, provocando as maiores dificuldades de resposta.
À excepção daquelas soluções que só mais tarde puderam entrar em vigor – como é o caso da legislação da Assembleia da República que converteu transgressões e contravenções em contra-ordenações, a vigorar só desde de Novembro – será possível muito em breve avaliar o impacto das medidas aprovadas em 2005.
Estamos convictos e temos já indicações expressivas de que o sistema de justiça e os que nele trabalham reagiram positivamente ao conjunto das soluções constantes do plano de descongestionamento.
Há mesmo sinais de encorajamento a uma segunda geração de medidas neste domínio, medidas que temos procurado aprofundar em diálogo com os maiores utilizadores do nosso sistema judicial.
No quadro judicial sobrecarregado que referi, investimos no alargamento de oferta no campo da resolução alternativa de litígios, conscientes de que essa é uma das vertentes decisivas do lance estratégico.
Entrou em vigor em Dezembro um sistema de mediação laboral, com o apoio activo de todas as centrais sindicais e patronais, além de grande parte das empresas de referência do País.
São de esperar efeitos significativos sobre a jurisdição laboral, que viu também condignamente resolvida uma situação de degradação que há décadas atingia o seu maior tribunal.
A Assembleia da República aprecia agora uma proposta de lei que institui um sistema de mediação penal, com o qual se pretende atribuir um papel importante à justiça restaurativa.
Novas soluções extra-judiciais estão a ser ultimadas, nomeadamente no domínio da acção executiva.
Com objectivos de modernização e de simplificação e visando melhorar a qualidade de resposta dos tribunais, levámos a cabo entretanto obras extensas de modernização no domínio processual.
Em comarcas das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto está agora já em aplicação um regime experimental de processo civil, que dota o juiz de novos instrumentos para enfrentar o fenómeno da litigância de massa.
A Assembleia da República aprovou já a proposta de lei respeitante à reforma dos recursos cíveis, que racionaliza o acesso ao STJ e lhe abre condições para um papel acrescido na orientação da jurisprudência, além de introduzir numerosos ganhos de simplificação e celeridade.
A proposta de lei de revisão do Código de Processo Penal agora em apreciação no Parlamento, introduz também benefícios muito relevantes em termos de tramitação. Não são apenas boas notícias para os direitos das vítimas e dos arguidos, são boas notícias para o processo crime e para a justiça penal.
Podemos dizer que 1/3 dos actos que até agora tinham de ser praticados, ou praticados em separado e em momentos sucessivos, deixam agora de o ser, tornando mais rápida uma tramitação concebida no passado, em muitos casos no primeiro quartel do século passado, em condições económicas, sociais e tecnológicas muito diferentes das actuais.
Com estas três reformas processuais – uma em vigor, outra aprovada e outra em discussão no Parlamento – pretende-se transmitir ao sistema um impulso coerente de modernização processual, que será complementado pelos efeitos esperados da nova legislação sobre custas judiciais e apoio judiciário.
No novo regime de custas, numa visão sistémica do tratamento da litigância de massa, estabelecem-se regras específicas para os grandes litigantes, ao mesmo tempo que no âmbito do apoio judiciário se melhora e racionaliza o nível da protecção actualmente proporcionado às pessoas carenciadas.
A aposta na desmaterialização dos processos judiciais tem sido e continua a ser uma prioridade do Governo.
Não se trata apenas da utilização das novas tecnologias de informação no quotidiano do sistema judicial, nem da mera utilização de computadores nos tribunais. A desmaterialização dos processos judiciais é sobretudo uma reforma de procedimentos, baseada nos benefícios que resultam da utilização de ferramentas tecnológicas pelos operadores judiciários, com vantagens para todos.
Vantagens, por um lado, para quem interage com os tribunais, que passa a ter um acesso mais directo ao sistema judicial, tornando a Justiça mais próxima. A este propósito deve ser recordado que mais de 259 000 requerimentos executivos apresentados pelos advogados foram enviados por via electrónica, com evidentes poupanças em deslocações e em horas de trabalho.
Mas também, por outro lado, vantagens para quem trabalha nos tribunais, que passa a ter instrumentos que minimizam o trabalho redundante e burocrático.
Foi o que sucedeu no regime processual experimental em processo civil, onde se acolheu a realização da citação edital através da Internet que permitiu, com a publicação de um único anúncio electrónico, a substituição de várias e repetidas citações em papel, à porta do tribunal, na sede da junta de freguesia e de anúncios em jornais.
Nesta matéria, não posso deixar de referir duas experiências em curso que nos permitirão dar passos seguros nos próximos tempos: o programa de desmaterialização do procedimento de injunção, já introduzido no Tribunal de Vila Nova de Gaia, e a experiência de desmaterialização dos recursos judiciais no Distrito Judicial de Coimbra.
O conjunto de medidas que tem vindo a ser aplicado não pretende apenas melhorar a capacidade de resposta pontual do sector judicial. Visa também criar condições para restituir centralidade aos tribunais.
Um sistema judicial vergado ao peso crescente dos processos pendentes – respeitantes em maioria a dívidas de limitado montante – não tem condições para desempenhar o seu papel em tempo útil, em particular nas vertentes de maior relevo jurídico-social. Não se trata apenas dum problema da 1ª instância: mais de metade dos recursos cíveis que sobem ao STJ versam, até agora, dívidas – e daí a importância da reforma dos recursos cíveis recentemente aprovada na Assembleia da República.
A efectividade e centralidade do papel dos tribunais é um elemento essencial da realização dum Estado de Direito Democrático, tanto na perspectiva fundamental dos direitos, liberdades e garantias, como na perspectiva da punição atempada de autores dos crimes, que a sociedade deles espera.
E é por isso que num Estado de Direito, quer se pense no terrorismo, na corrupção ou nos tráficos criminais, a responsabilização deve ter sempre como referência central o tribunal e os princípios que ele deve assegurar.
Na nossa construção constitucional, o Conselho Superior de Magistratura é o órgão com responsabilidades mais ligadas à garantia da efectividade do papel dos tribunais.
Não obstante, desde a entrada em vigor da Constituição em 1976, esse Conselho nunca foi dotado dos meios e da autonomia administrativa e financeira que a natureza da sua função justifica.
Assumi aqui a este respeito um compromisso.
Pois bem: o Governo cumpriu no ano que passou a sua parte, dando entrada na Assembleia da República a uma proposta de lei que dará pela primeira vez ao Conselho um estatuto compatível com as suas responsabilidades constitucionais.
Aproxima-se agora o momento em que Portugal exercerá a presidência da UE.
É também uma oportunidade e um estímulo para o sistema judicial português, como tem vindo a acontecer noutros países, quer do ponto de vista da cooperação com os sistemas de outros Estados-Membros quer duma maior aproximação a instituições europeias na área da justiça, que está previsto virem participar em diversos actos em Portugal.
Quando a tutela jurídica de muitos direitos tem já hoje uma matriz europeia, precisamos de criar condições para tornar entre nós o direito comunitário um direito mais aplicado pelos tribunais.
Impunha-se também instituir mecanismos de comunicação que têm faltado entre a esfera jurisdicional interna e jurisdições supranacionais e internacionais.
Sublinho que na reforma dos recursos cíveis e do processo penal se incluem pela primeira vez soluções de grande significado para promover a reconciliação entre as decisões dos tribunais portugueses e as decisões das instâncias internacionais cuja jurisprudência vincula Portugal.
Com a Alemanha e a Eslovénia, no quadro do actual trio de presidências, inscrevemos o tema e-Justice na agenda europeia para os próximos dezoitos meses.
Quer na actual perspectiva transfronteiriça – onde tem já relevo a ordem europeia de pagamento e o acesso electrónico ao registo criminal entre certos países – quer numa perspectiva de expansão da transmissão electrónica de elementos processuais, estamos convictos que o semestre da Presidência portuguesa será também um momento positivo e estimulante para a modernização da justiça portuguesa.
O mesmo acontecerá certamente noutros subsistemas da justiça onde tem vindo a ser desenvolvidas inovações, como a empresa na hora, que têm registado elevado nível de reconhecimento internacional.
Por outro lado, a realização em Lisboa, em Outubro deste ano, de uma conferência contra a pena de morte, com participações de outros continentes, oferecerá à cultura jurídico-penal portuguesa um momento singular de afirmação, no quadro da presidência portuguesa.
Em vários países da União Europeia têm lugar, por esta altura, cerimónias como aquela em que participamos.
A ideia que se recolhe participando nesses actos, tal como a que se retira das comparações estatísticas, europeias e internacionais, não é tão desanimadora como alguns imaginam.
Temos um imenso trabalho pela frente, mas nada resolvemos se nos colocarmos num lugar diferente daquele que realmente ocupamos e sobretudo se não soubermos valorizar os nossos próprios progressos.
Há um processo reformista em desenvolvimento, com um amplo suporte democrático em torno de aspectos essenciais.
Mas é indispensável a participação nesse esforço de modernização de todos os que trabalham no mundo da justiça.
Nesta abertura do novo ano judicial, a todos saúdo na pessoa do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, consciente de que, cada qual pelo seu próprio caminho, todos saberemos contribuir para um grande objectivo nacional – uma justiça moderna de qualidade, apta a servir melhor os cidadãos e as empresas.

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