sábado, fevereiro 03, 2007

DISCURSO DE SUA EXCELÊNCIA, O PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAJUIZ CONSELHEIRO DR. NORONHA DO NASCIMENTO
Ano após ano, no mês de Janeiro, o Estado, encarnado na veste dos seus poderes soberanos ou das suas entidades de referência, é convocado para a celebração comum sobre o universo judiciário.
Não se trata, nem pode ser, um momento de celebração cénica; é sim, o acto único e simbólico de concertação institucional por força do qual se avalia, pondera, avaliza, confirma ou duvida do rumo traçado e dos efeitos previsíveis.
A diversidade de enfoques não faz empalidecer a interdependência dos actores.
E esse é, talvez, o sinal maior deste acto emblemático: o Estado transposto para a leitura, porventura díspar, dos diagnósticos possíveis mas ancorado na solidariedade inalienável que a todos nós compete.
O Judiciário português enferma de um mal matricial: o excesso de acções de dívida formigueira que enxameiam o sistema potenciando a morosidade processual.
Solucioná-lo é, pois, uma questão de profilaxia colectiva.
Em Outubro passado foi publicado o mais recente relatório da CEPEJ (Comissão Europeia Para a Eficácia da Justiça), organismo do Conselho da Europa, acerca do funcionamento dos Judiciários dos países europeus; e a morosidade processual está aí presente como um dos seus capítulos principais.
Nas acções declarativas, onde a intervenção do tribunal e do juiz é nuclear porque é aí que se define o direito, a CEPEJ centrou a análise da morosidade em quatro tipos paradigmáticos de processos: despedimento contestado, divórcio litigioso, homicídio voluntário e roubo.
Exceptuados os países que não forneceram dados para a medição do "délais" processual, e centrando-nos tão só nos países da Europa Central e Ocidental, aquele relatório fornece-nos os números seguintes:
a) despedimentos contestados: na 1.ª instância, os tempos médios de duração são:
Holanda: 1 mês
Espanha: 2 meses e meio
Portugal: 8 meses
Finlândia: quase 9 meses
França: quase 1 ano
República Checa: 1 ano e 4 meses
Itália: 1 ano e 11 meses
Na instância de recurso, e excluída a Holanda que não apresentou índices de medição, os tempos médios são:
República Checa: 4 meses e meio
Portugal: 5 meses e meio
Espanha: 7 meses e meio
Finlândia: pouco mais de 1 ano
França: ano e meio
Itália: 2 anos e 2 meses
Se adicionarmos o total da instância e do recurso teremos a Espanha com 10 meses, Portugal com 13 meses e meio, a República Checa com 20 meses e meio, a Finlândia com 21 meses, a França com quase 30 meses, a Itália com 49 meses (mais de 4 anos).
b) divórcios litigiosos: a lista dos países com valores mensuráveis totais na 1.ª instância e recursos é a seguinte:
Holanda: 12 meses (4 na 1.ª instância e 8 meses em recurso),Portugal: 13 meses e 3 semanas (10 meses e 1 semana, mais 3 meses e meio),França: 2 anos e 5 meses (1 ano e 2 meses, mais 1 ano e 3 meses), Itália: 3 anos (1 ano e 7 meses, mais 1 ano e 5 meses). Dos países que só forneceram valores quanto à 1.ª instância, temos: Finlândia: 8 meses, Espanha: 8 meses e 1 semana, Alemanha: 10 meses
c) no homicídio só seis países e no roubo só oito forneceram elementos para mensurar a morosidade processual, e ainda assim em alguns casos limitados à 1.ª instância. No roubo, a Finlândia demora um total de 1 ano nas duas instâncias, Portugal cerca de 1 ano e 3 meses e a França 2 anos e 2 meses. Por seu turno, no homicídio, a Finlândia gasta no total (instância e recurso) 13 meses e Portugal 13 meses e 10 dias. Quem recordar ainda o caso Dutroux, na Bélgica, terá retido na caixa de música da sua memória (como diria Nabukov na sua "Lolita") que o julgamento se iniciou com o réu preso havia 7 anos e meio, coisa impossível de suceder entre nós.
O relatório europeu da CEPEJ põe manifestamente em causa algumas ideias dogmaticamente publicitadas e assentes nesta matéria.
Em primeiro lugar, os tribunais portugueses não saem maltratados (muito pelo contrário) quando confrontados com os congéneres dos países europeus mais aproximados.
Naquilo que ainda há dias o Observatório Permanente da Justiça designou por litigância nuclear - ou seja, aquela sobre a qual se centra a cidadania dos direitos e sobre a qual se constrói a representação social dos tribunais - a morosidade de decisões judiciais em Portugal atinge valores comparativamente razoáveis; nos tribunais de recurso, então, o sistema português é, quase sistematicamente, mais rápido do que o da generalidade dos outros países.
Em segundo lugar, a morosidade processual entre nós é sempre muito menor do que em alguns outros países bem mais desenvolvidos economicamente; os casos da França e Itália são por demais paradigmáticos com taxas de "délais" incomportáveis para os nossos hábitos a tal ponto que leva quase a curto-circuitar a relação entre a eficiência do judiciário e o top do desenvolvimento.
Mas o relatório da CEPEJ contém outros números que permitem a inteligibilidade do nosso sistema.
Analisando a capitação de processos por 100.000 habitantes, a CEPEJ dá-nos estes valores: 292 processos na Noruega, 1926 em Espanha, 2862 em França, 3738 na Alemanha e 5966 em Portugal. Apenas a Itália tem uma capitação similar à nossa (6159) e a Áustria uma capitação superior (9970) por razões que aliás não consigo descortinar.
Temos, assim, que, por 100.000 habitantes, Portugal tem pouco menos que o dobro dos processos da Alemanha, mais do dobro da França, o triplo da Espanha e 20 vezes mais que a Noruega.
A razão de ser desta décalage percentual é óbvia: a concessão de crédito foi de tal modo desregrada de há 20 anos a esta parte que inundou os tribunais portugueses de acções de divida, envenenando os tempos médios de morosidade processual e criando uma disparidade de procura judicial entre Portugal e os restantes países da União.
Mau grado isso, na litigância nuclear (ou seja, naquilo que define a medula do poder judicial na sua função de julgar verdadeiros conflitos de interesses e não no seu trabalho oculto de publicano que cobra dividas), os tribunais portugueses são comparativamente rápidos; o que nos permite compreender que se a avalanche de acções de divida for regulada e resolvida, os tribunais portugueses serão provavelmente céleres na sua globalidade e o sistema funcionará, em todas as instâncias, com quadros inferiores aos actuais.
Sanear este tipo de pendência processual é uma urgência de saúde comunitária, testando possíveis soluções diversas, algumas delas acumuláveis: seja fixando limites de franquia acima ou abaixo dos quais o utilizador frequente não cobra, seja criando juízos próprios ou secções próprias nos tribunais comuns para julgar essas acções libertando tudo o resto para os litígios nucleares (como se faz na Holanda), seja deferindo parte da competência para os julgados de paz, seja qualquer outra que se revele eficaz.
O utilizador frequente dos tribunais é, em regra, uma empresa com potencial económico; por isso, quando age no mercado é suposto ter estudos prévios de prospecção que lhe permite saber qual a percentagem de clientela que não pagará voluntariamente o serviço e que irá ser demandada em juízo.
Fazer incidir previamente sobre quem paga o custo de quem não paga é o corolário lógico a extrair da prospecção feita.
As acções de divida correspondem, por isso, a formas liquidas de cobrança de créditos, algo que justifica ainda mais uma visão diferente daquela que normalmente se tem para o comum dos direitos creditícios.
Os tribunais são vistos, hoje, cada vez mais como uma das componentes do sistema produtivo sem que isso signifique que só são ricos os países com Judiciários eficazes.
Provavelmente estaremos perante um caso típico de efeitos reciprocamente condicionados por factores que interagem: nas regiões menos produtivas os tribunais produzem menos como o resto da vida social e porque produzem menos aceleram a menor produtividade dessas regiões como causa coadjuvante.
A União fornece-nos vários exemplos disso: no norte de Itália, bem mais rico do que o sul, os Tribunais têm o triplo da produtividade dos do sul no dizer de Chiarloni (professor de direito da Universidade de Turim), e na Flandres - mais rica que a Valónia - os Tribunais funcionarão melhor, segundo Jean Gillardin.
Sem embargo, leituras cruzadas podem pôr em xeque estas conclusões lançando a dúvida sobre um certo sebastianismo mítico que, entre nós, se vai formando nesta matéria.
Na verdade, países do leste europeu (com Judiciários qualitativamente inferiores ao nosso) têm taxas de crescimento económico superiores às nacionais e o relatório da CEPEJ induz que alguns países mais desenvolvidos que o nosso não têm tribunais mais rápidos que os portugueses.
No que nos toca, a este Supremo Tribunal de Justiça, a morosidade não mora aqui.
Em 2006 foram julgados nas secções cíveis, criminais e social do Supremo 4728 recursos, o que dá uma capitação aproximada de 85 relatos anuais por cada Juiz-Conselheiro em exercício pleno de funções; e o tempo médio dessas decisões foi de cerca de 3 meses e uma semana.
Mas nesta reflexão sobre o presente, paremos aqui.
Não que não haja temas da actualidade recente; mas a temperatura gerada e uma reserva profissional que a ética nos impõe, levam-nos a uma simples remissão para a notícia que o diário espanhol "El Pais" dava no passado dia 21 de Janeiro.
Mas parar neste momento não significa nem impede que façamos uma incursão prospectiva ao futuro.
E o futuro - tememo-lo nós - assistirá provavelmente ao crescimento exponencial de medidas securitárias.
O Direito é um regulador social de comportamentos humanos assente num binómio contraditório: a justiça e a segurança. Bem pode suceder que o reflexo defensivo do nosso mundo civilizacional leve ao disparo incontrolado de medidas securitárias comprimindo direitos de personalidade e cidadania.
O Ocidente sempre teve excedentes demográficos que, a partir das descobertas, levaram à migração de europeus para outras paragens; excedentes esses que associados ao desenvolvimento da ciência (que a separação entre a fé e a razão engendrou), nos permitiu criar o mundo que temos.
Hoje, pela primeira vez desde o ano 1000, o Ocidente está em contraciclo demográfico estrutural em relação ao resto do mundo com taxas de reprodução que atingem a discrepância de 1 para 5.
É certo que a Europa conhecera antes dois momentos de perda populacional, mas por razões conjunturais: no séc. XIV com as pestes negras; no séc. XVII com a crise económica iniciada cerca de 1620 que conduziu às previsões malthusianas desmentidas pela revolução industrial.
Por isso, George Duby dizia há dez anos que estávamos todos a recriar os pavores do ano 1000: o desenraizamento urbano, as pestes e as invasões.
Os povos sempre migraram de zonas pobres com gente a mais para terras ricas com gente a menos; e as civilizações ricas e brilhantes sempre deixaram de se reproduzir a partir de um certo patamar de desenvolvimento.
Esquecemo-nos que a Reconquista da Península se fez pelo excesso demográfico dos cristãos pobres do norte que iam ocupando os ermos que a civilização do sul já não conseguia cobrir populacionalmente; e Roma entrou em déblacle quando não aguentou mais as fronteiras da Síria e da Germânia.
Daí que os fenómenos recentes de Lampedusa, Canárias e Adriático sejam a ponta visível do iceberg que nos toca; porque, com a população comunitária a reproduzir-se apenas a taxas ínfimas de 1,2 - 1,6 filhos por mulher (quando a taxa de substituição demográfica é de 2,1) e a população saxónica dos E.U.A. a diminuir anualmente à média de 0,7%, até Samuel Hungtington abandona os critérios civilizacionais históricos firmados por Arnold Toynbee para excluir do nosso convívio povos que sempre fizeram parte da nossa herança.
Os efeitos de tudo isto no mundo do Direito já se notam: o direito de asilo e de permanência mudou redutoramente em vários países, mesmo naqueles que tinham uma visão larga da sua amplitude; alguns movimentos sugerem ou defendem uma redefinição da titularidade da propriedade imobiliária e da transmissão sucessória como controlo do domínio dos solos; alguns estados (nomeadamente federados) eliminam ou restringem drasticamente o direito à saúde, educação e justiça de imigrantes ilegais; e até a imprensa se faz eco, num registo menor, desta problemática quando discorre sobre a filiação biológica e adoptiva como se tivéssemos regressado ao tempo do princeps dos romanos.
As escutas telefónicas, essas vieram obviamente para ficar; porque, hoje, elas não são mais um meio investigatório de crimes de colarinho branco mas também dos crimes de terrorismo.
Mal será, sim, termos um dia que discutir a admissibilidade de escutas preventivas subtraídas ao controlo jurisdicional (ou para-jurisdicional) ou a descaracterização da prisão preventiva para lá dos limites sedimentados em Convenções Internacionais.
A história nunca se repete. Por isso o Apocalipse não passa de retórica bíblica.
O drama é se "1984" e Orwell ainda estão para chegar.

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