terça-feira, janeiro 29, 2008

Discurso do Presidente da República na Abertura do Ano Judicial de 2008

Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhor Ministro da Justiça
Senhor Procurador-Geral da República
Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados
Senhoras e Senhores
Excelências
Nesta sessão solene de abertura do ano judicial de 2008, começo por dirigir-me ao povo português, pois é em seu nome que a justiça é administrada. Os cidadãos são os destinatários últimos de um poder judicial que não existe para si próprio, mas para realizar duas das mais nobres aspirações humanas: a justiça em liberdade e a segurança em sociedade.
Saúdo, pois, todos os cidadãos que legitimamente procuram os tribunais em busca de justiça e que esperam que os tribunais, com independência e rigor, lhes façam justiça num prazo razoável. Saúdo também a magistratura portuguesa, prestando a minha homenagem à dedicação dos magistrados e ao esforço que têm feito para tentar resolver em tempo útil os milhares de processos que todos os anos afluem aos nossos tribunais. A nobreza da função jurisdicional exige que as magistraturas sejam dignificadas e prestigiadas. Trata-se de uma imposição que interpela não só os agentes políticos mas também os próprios magistrados e os operadores judiciários em geral, no quadro de uma cultura de responsabilidade e elevação, avessa a ambições pessoais de protagonismo ou exposição pública. Ao contrário do que sucede com os demais órgãos de soberania, os tribunais não têm uma legitimidade democrática directa. A sua legitimidade é uma legitimidade de exercício, não uma legitimidade de título, para usar dois conceitos que todos os presentes nesta sala bem conhecem. A legitimidade da função de julgar depende do tempo e do modo como essa função é exercida. Daí que um sistema judicial só possa considerar-se verdadeiramente democrático se for capaz de dar resposta de modo eficaz e em tempo oportuno às expectativas da comunidade. Por isso, é frequente suscitarem-se em torno da justiça algumas interrogações. Perguntas simples, mas essenciais: os Portugueses confiam e acreditam na justiça do seu país? Aos olhos dos cidadãos, o nosso aparelho judiciário é eficiente e capaz de proteger os seus direitos? O nosso povo considera que a justiça que temos é verdadeiramente justa e igual para todos? A resposta a estas questões é fundamental para definir o perfil e o futuro da justiça portuguesa. Sem cedência a populismos fáceis ou de ocasião, é indiscutível que qualquer reforma do sistema judicial tem de ir ao encontro dos legítimos anseios de justiça e de segurança dos Portugueses. Desde há muito que se fala em crise da justiça e na necessidade de reformar o sistema judicial. Para isso, fazem-se novas leis, alteram-se códigos, ensaiam-se novas soluções, confia-se no poder das novas tecnologias. Muitos problemas encontram-se diagnosticados. Em diversas áreas, foi possível obter consensos. No entanto, a dúvida permanece: os Portugueses revêem-se no aparelho judiciário e nas decisões dos magistrados? Os cidadãos orgulham-se da justiça do seu país? Perante as reformas já introduzidas ou em curso, deveremos ter presente, antes de mais, que um sistema normativo pode ser muito perfeito de um ponto de vista técnico-jurídico mas só será eficaz se em torno dele se reunirem três condições. Em primeiro lugar, as reformas devem ser compreensíveis pelos cidadãos. Mesmo aqueles que não possuem formação jurídica devem ser capazes de apreender, nas suas linhas fundamentais, o sentido das alterações introduzidas na ordem jurídica do seu país. E, sem prejuízo do necessário rigor técnico, também as decisões judiciais têm de possuir a necessária clareza que as torne perceptíveis para os seus destinatários. Do mesmo modo que a política judicial tem de seguir uma linha de rumo coerente e transparente, a jurisprudência deve ter fundamentos racionais e critérios de justiça material que o cidadão seja capaz de perceber. Legislar com clareza e decidir com responsabilidade são imperativos de cidadania. Em segundo lugar, não é possível ter a pretensão de reformar a justiça sem ouvir aqueles que, com um saber de experiência feito, conhecem como ninguém o quotidiano da vida judiciária e todos os dias lidam com milhares de processos nos nossos tribunais. Qualquer lei, por mais perfeita que seja em teoria, não existe em abstracto. Se as leis têm de ser claras e perceptíveis para os cidadãos, mais ainda o devem ser para aqueles que têm a função de as aplicar aos casos concretos. A feitura das leis jamais pode prescindir de uma ponderação realista das condições da sua aplicabilidade. De nada adianta termos leis muito avançadas ou ambiciosas se não dispusermos de meios para as pôr em prática. E só quem pratica o Direito é capaz de dizer se o Direito que se faz é praticável. Em terceiro lugar, as grandes alterações ao ordenamento jurídico devem ser acompanhadas de um escrutínio permanente dos respectivos resultados. É essencial sabermos que efeitos produziu uma determinada reforma, se teve consequências positivas ou negativas em relação aos fins que se propunha alcançar. É fundamental perceber o que correu bem e o que correu mal, para sermos capazes de avaliar objectivamente aquilo que deve ser corrigido e melhorado. Julgamos com frequência que uma reforma se faz através de uma simples mudança dos textos normativos. Não é verdade. Alterar normas jurídicas pode não ser a parte mais difícil de qualquer reforma. Uma verdadeira reforma faz-se com ponderação e equilíbrio, com sentido de estabilidade e previsão das suas consequências e dos seus custos. As alterações nos nossos códigos e nas nossas leis devem ser sujeitas a uma monitorização contínua dos resultados produzidos e a um esforço de detecção precoce dos problemas. De nada vale fazer reformas se não fizermos um balanço da sua eficácia para o aumento da produtividade e da qualidade do serviço público da justiça. De resto, em relação a todas as grandes reformas, sejam elas nos domínios da justiça, da segurança social, da educação, da saúde ou qualquer outro, seria de toda a vantagem generalizar a prática da criação de pequenos núcleos de acompanhamento da respectiva execução, de modo a que os agentes políticos introduzam as melhorias que a experiência revele serem necessárias.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Todos sabemos que a actividade judicial tem os seus tempos próprios. Os ritmos de uma justiça de qualidade não são, nem devem ser, os ritmos vertiginosos da comunicação social, de quem se espera também contenção, seriedade e rigor no tratamento noticioso dos casos pendentes nos nossos tribunais. Mas o tempo da justiça tem de ser o tempo dos cidadãos, o tempo de uma sociedade em permanente mudança. Do funcionamento eficaz do aparelho judiciário depende a concretização dos direitos e das garantias individuais, mas também o desenvolvimento económico e social de um país. A justiça tem custos, mas uma justiça tardia ou imprevisível terá sempre custos muito superiores para o progresso e o bem-estar de um país. Os tribunais, é certo, não são indústrias de produção de decisões judiciais. Mas nem por isso devem estar isentos de uma apreciação quantitativa do trabalho que desenvolvem. A celeridade não é um valor absoluto, mas a lentidão não pode ser uma prática instalada. As deficiências de funcionamento do sistema judicial perturbam a fluidez e o dinamismo da actividade económica, afastam o investimento, contribuem para o aumento das tensões e dos conflitos sociais, potenciam o crescimento da insegurança. O acesso ao Direito e aos tribunais é um direito fundamental que tem de continuar a ser assegurado e aprofundado. Só existe igualdade perante a lei onde e quando existir igualdade no acesso à justiça e a todas as garantias processuais. A justiça não pode estar à mercê daqueles que recorrem a todos os instrumentos processuais como meio dilatório para impedir ou retardar o trânsito em julgado das decisões judiciais. O Estado de direito não pode ser refém daqueles que dispõem de maiores recursos. Além de uma condição de desenvolvimento, a celeridade na realização da justiça é também um imperativo de igualdade social. Não é tolerável que o desfecho de alguns processos se arraste durante anos apenas porque as partes dispõem de meios para evitarem a realização pronta da justiça. É inadmissível que as garantias processuais, que existem para fazer justiça, acabem por reproduzir e até amplificar desigualdades existentes na sociedade. Se assim for, a justiça converter-se-á num elemento criador de novas injustiças e num novo factor de exclusão social. Não é esse, decididamente, o modelo de justiça que desejo para Portugal. E estou certo que também não é esse o modelo de justiça que os presentes nesta sala pretendem para o seu país. É urgente, por isso, que exista uma mobilização colectiva em torno da justiça, um compromisso cívico para a melhoria do sistema judicial. Neste contexto, os cidadãos e as empresas são chamados a partilhar uma cultura judiciária de responsabilidade, compreendendo, antes de mais, que a justiça tem custos associados. É um dever cívico não sobrecarregar o sistema judicial com litígios que poderiam ser resolvidos noutra sede. É um dever cívico respeitar as decisões judiciais e quem as profere. É um dever cívico não utilizar a justiça para fins que lhe são alheios. Uma cultura judiciária de responsabilidade interpela igualmente os agentes políticos e os operadores jurídicos. Não adianta apurar responsabilidades entre quem legisla e quem aplica as leis, prolongar conflitos e tensões que só descredibilizam a justiça e os seus protagonistas aos olhos dos cidadãos. De pouco vale tentar encontrar culpados pelo estado do sistema judicial português. As culpas podem ser de alguns, mas o problema da justiça a todos afecta. Como disse no início, o sistema de justiça não existe para si próprio, mas para servir os cidadãos. Os Portugueses querem mais segurança e melhor justiça. O Presidente da República estará sempre ao lado dos cidadãos na defesa daqueles valores fundamentais do Estado de direito democrático. Em nome desses valores, faço votos que o ano judicial que agora se inaugura seja um ano de tranquilidade, de trabalho e de exigência. Estou certo de que todos contribuirão serenamente para que Portugal tenha uma justiça de qualidade, vocacionada para os cidadãos e que funcione com eficácia e rigor. Em nome de uma justiça mais justa, desejo-vos um bom ano judicial de 2008.
In Página Oficial da Presidência da República.

Sem comentários: