terça-feira, janeiro 22, 2008

Estão a tirar a Justiça dos tribunais e a remetê-la para centros de mediação

Na sua primeira entrevista depois de ter sido eleito bastonário, Marinho e Pinto aponta armas à desjudicialização e também aos magistrados. Quer os juízes responsabilizados pelos erros que cometem, e que sejam "julgados pelo povo".
Já está a exercer o cargo em exclusividade?
Já. A Ordem tem uma dimensão enorme. Um bastonário que não esteja a tempo inteiro não exercerá cabalmente as funções para que foi eleito. Além disso, só em dedicação exclusiva, sem estar a exercer a actividade de advogado, se poderá ter verdadeiramente a independência perante o Governo e os magistrados.
Quais serão as suas primeiras medidas?
Vamos implementar coisas novas no que diz respeito ao estágio e ao apoio judiciário. Estamos a iniciar um processo de negociação com o Governo. Quero ainda ter uma intervenção muito activa na defesa dos advogados face às prepotências de que são vítimas, por parte de alguns magistrados, em tribunal. Também tenciono apresentar, em breve, propostas de alterações legislativas com vista a alterar algumas situações, uma das quais é um verdadeiro escândalo as advogadas portuguesas são as únicas mulheres trabalhadoras que não têm direito a um período de maternidade, têm de continuar a trabalhar porque há prazos a cumprir.
O que pretende fazer, quanto à massificação da advocacia e à desjudicialização da Justiça?
Pretendo através de uma argumentação séria mostrar ao Governo o que é uma evidência. O que marca a passagem da barbárie para a civilização na história da Humanidade é justamente aquele momento em que o Homem, o Estado, chama a si o monopólio da administração da Justiça. Hoje, isso não está a acontecer. É o regresso à barbárie, um retrocesso civilizacional. O Estado está a tirar a administração da Justiça dos tribunais, e está a remetê-la para as conservatórias de registo civil, para centros de mediação.
E o novo mapa judiciário?
O mapa judiciário é para afastar. É a lógica dos serviços de urgência e das maternidades.
É incentivar a justiça pelas próprias mãos?
É o que está a acontecer. Quando o Estado se demite, quem tem dinheiro para contratar uma empresa, ou um grupo de seguranças para ir ajustar contas com o devedor, vai fazê-lo. Isto gera as maiores violências. A Justiça é para pacificar. Se os dirigentes políticos não percebem esta coisa elementar, têm de ser substituídos.
Vai dizer isso ao ministro?
Já lhe disse. Isto é um retrocesso civilizacional. O Poder Político tem vindo a colocar a Justiça no mercado, à venda, como se fosse um bem de luxo.
Defendeu que a Ordem deveria constituir-se assistente em determinados processos. Quais?
Sim, naqueles em que estiver em causa o Estado de Direito. Irei discutir. Não quero dar exemplos. Hoje, a grande ameaça ao Estado de Direito é a corrupção
Isso significa que não confia no trabalho do Ministério Público (MP)?
Eu tenho muitas razões para não confiar plenamente na acção do MP. Através da prática, podemos concluir que o MP tem sido muito forte com os fracos e muito, muito fraco com os fortes. Depois, há situações como aquela que o dr. Saldanha Sanches denunciou, em que há magistrados do MP que foram praticamente "capturados" pelas autarquias.
Perdem a isenção?
Perdem a capacidade de actuar com isenção. Criam-se relações pessoais tão intensas que naturalmente se repercutem na objectividade e na isenção com que se actua. Conheço casos de magistrados que agem, em relação a certos autarcas, em processos-crime, como se fossem advogados deles.
Disse que não queria advogados no Parlamento?
Não, não quero. Quer dizer, suspendam. São colegas meus que lá estão a fazer leis e depois vêm fazer julgamentos para o tribunal.
Como se está a relacionar com as grandes sociedades de advogados?
Muito bem. Eu não sou contra as grandes sociedades. O que eu quero é que haja transparência no relacionamento com o Governo. Tem de haver concursos públicos abertos a todas as sociedades. Se o Estado abre um concurso público para adjudicação de uma empreitada, e se às vezes há serviços de assessoria jurídica que são mais caros do que muitas empreitadas, devem abrir concurso público.
Os honorários de milhões não o chocam?
Em Portugal, vivemos os dois extremos. Às vezes, chocam-me os números que vêm a público. O Estado é capaz de gastar milhões e milhões em honorários por serviços jurídicos cuja necessidade ninguém viu ou não foi explicada, mas, por exemplo, chegamos ao apoio judiciário e deparamos com situações que são verdadeiramente ofensivas da dignidade profissional e pessoal. Veja--se a nova lei do apoio judiciário. Agora o Estado pretende que as despesas sejam incluídas na remuneração pelo trabalho do advogado. Isto é ofensivo.
Esses pagamentos irrisórios justificam que os estagiários, que são quem faz as defesas oficiosas, se limitem a pedir justiça?
Esse é outro ponto. Tenho de dar o braço a torcer. E por que é que um advogado estagiário se limita a pedir justiça? Alguns não sabem, não são ainda advogados. Vou propor e bater-me abertamente para que o patrocínio oficioso seja feito só por advogados. Por que é tão crítico relativamente aos juízes?
Os senhores magistrados têm que ter a humildade republicana para aceitarem serem julgados por aqueles em nome de quem administram a Justiça, ou seja, pelo povo.
Há falta de cultura democrática?
Há. A Justiça nunca foi democratizada. Funciona segundo paradigmas autocráticos, cuja origem se perde nos tempos.
Há demasiado corporativismo?
Sim e depois o sindicalismo nas magistraturas tem destas consequências. Mas não é só aí, nas polícias também acontece. À noite não vê um polícia na rua. O polícia virou funcionário. Estão centenas deles na esquadra entre as 9 e as 18 horas. Quando devia haver 10 ou 15 polícias a passear na rua à noite, vão todos para casa.
Por que é que os tribunais não funcionam?
Nunca houve uma verdadeira reforma na Justiça, nem no 25 de Abril. O que é que o 25 de Abril fez na Justiça? Nada. Estes vícios já vêm do Estado Novo. É preciso construir um novo paradigma de Justiça, assente em magistrados independentes e não funcionários e em advogados independentes.
Concorda que os magistrados passem a ser responsabilizados pelos erros que cometem?
Os magistrados têm que ser responsabilizados. Sou a favor disso porque quem vai fazer esse julgamento são outros magistrados. Neste momento há situações, prerrogativas funcionais dos magistrados que foram transformadas quase em privilégios pessoais. Isso é notório. A independência é uma garantia dos cidadãos, não pode ser um privilégio das pessoas fazerem o que quiserem. A irresponsabilidade tem limites.
Há muitos erros judiciários?
Há bastantes. O problema não é haver erros. O problema está em sermos capazes de os corrigir e de os reconhecer e o que assistimos, muitas vezes, é que se comete um erro e aparece toda a corporação a dizer que não é erro.
A propósito das declarações de El Solitário sobre o sistema prisional, o juiz Alexandre Baptista Coelho, criticou a possibilidade de os detidos darem entrevistas. Concorda?
É inadmissível que um magistrado venha impor a lei da rolha aos reclusos. Proibir alguém de falar à comunicação social é um paradigma perfeitamente medieval, totalitário, obscurantista.
In Jornal de Notícias, Online.

Sem comentários: