terça-feira, janeiro 29, 2008

A Lei, as leis e a dignidade da consciência

1. Os textos da Escritura proclamados nesta celebração dizem-nos que, na visão bíblica do homem, da sua identidade profunda, faz parte a lei moral, gravada no seu coração, prévia a qualquer lei positiva, religiosa ou civil. O homem, porque inteligente e livre, é o único ser da criação interpelado e conduzido por uma lei moral, a partir da qual será julgado. Se alguma vez o homem se afirmasse como um ser sem lei, negaria a sua própria identidade.
Paulo, na Carta aos Romanos, aborda este tema, pondo em confronto os judeus, dotados de uma lei religiosa muito elaborada ao longo de séculos e todos os outros, os pagãos, não atingidos por essa lei mosaica, mas que nem por isso são sem lei, pois trazem em si mesmos a sua própria lei, e relaciona essa lei universal, gravada no coração de cada homem, com a dignidade da própria consciência: “eles mostram o realismo dessa lei gravada no seu coração, comprovada no testemunho da sua consciência” (Rom. 2,15).
O Concílio Vaticano II explicita, para o nosso tempo, este ensinamento do Apóstolo Paulo: “No fundo da sua consciência, o homem descobre a presença de uma lei que ele não se deu a si mesmo, mas à qual é chamado a obedecer. Esta voz, que continuamente o impele ao amor e a realizar o bem e a evitar o mal, no momento oportuno ecoa no íntimo do seu coração: faz isto, evita aquilo. É uma lei inscrita por Deus no coração do homem; a sua dignidade está em obedecer-lhe e é ela que o julgará. A consciência é o centro mais secreto do homem, o santuário onde se encontra a sós com Deus, onde a Sua voz se faz ouvir” (G.S. nº 16).
A esta lei interior, prévia a qualquer lei positiva, costuma chamar-se a “lei natural”. A expressão nunca aparece na Sagrada Escritura, mas passou a ser usada, a partir de um certo momento, no Magistério da Igreja. Ela contrapõe-se à lei positiva e não exclusivamente à lei religiosa, até porque esta é a explicitação dessa lei primeira, gravada por Deus no coração do homem. Se reconhecermos esta lei primordial, afirmada no santuário da consciência, põe-se-nos o problema da relação de toda a lei positiva, religiosa ou não, com essa lei fundamental, base para a explicitação de todo o enquadramento legal como caminho para a busca do bem, no exercício da liberdade.
2. A relação entre esta lei primordial e a lei positiva vê-se, claramente, na lei religiosa de Israel e depois na lei cristã. Ambas têm origem em Deus Criador, indicam o caminho indicado por Deus para a realização do homem, em busca de uma plenitude de liberdade e de vida. Ajuda-nos a perceber essa unidade a explicitação dos conteúdos dessa lei natural: antes de mais, a dignidade da consciência, onde está gravado o sentido do que é bem e do que é mal. O bem explicita-se, antes de mais, no reconhecimento de Deus, na obediência ao caminho por ele indicado, que toma a forma do amor e da adoração. O respeito pela dignidade dos outros, que ganha forma no amor do próximo, expresso logo de início no amor do homem e da mulher e no respeito pela vida, expressa na denúncia do crime de Caím (Gen. 4,7ss). O Concílio concretiza estes conteúdos da consciência original: “É de uma maneira admirável que se revela à consciência esta lei que se realiza no amor de Deus e do próximo” (G.S. nº16). Por outro lado afirma-se que a lei divina e a lei natural são o fundamento sólido de uma comunidade fraterna entre os homens (cf. G.S. nº89).
Os conteúdos desta lei natural imprimiram-se em tradições religiosas e culturais, que deram origem à lei religiosa de Israel. A Lei Mosaica, chamada Thora, sobretudo o decálogo, é o assumir dos conteúdos dessa lei primordial impressa no coração do homem, na lei religiosa. Amarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto; honrarás pai e mãe; não matarás; não cometerás adultério; não roubarás; não julgarás falso; não desejarás a mulher e os bens do teu próximo (cf. Ex. 20,1-17). Para que esta lei positiva seja humana e dinamize a existência do homem em dignidade, ela não pode, nem desconhecer, nem contradizer, essa lei fundamental gravada no coração do homem. Aliás o respeito pela dignidade da consciência será sempre um desafio a toda a lei positiva.
Jesus, no Sermão da Montanha, dá uma expressão definitiva aos dinamismos que Deus pôs no coração humano. Podemos considerar, como o faz Bento XVI no seu livro “Jesus de Nazaré”, o discurso das bem-aventuranças como o enunciar da nova thora, a Lei do Messias. Essa lei primordial, Cristo, enquanto Homem, tem-na bem viva no Seu coração de Filho. Podemos dizer que no Seu coração está bem presente o desígnio de Deus, o caminho sugerido aos homens, o Seu amor pelos homens. N’Ele, a lei primordial torna-se, verdadeiramente, a Sua Lei, a Lei de Cristo. N’Ele o homem recupera a liberdade em relação aos imensos preceitos em que se foi concretizando a lei positiva, como escreve Paulo aos Gálatas: “Cristo libertou-nos para que ficássemos livres. Permanecei firmes (em Cristo), para não vos sujeitardes ao jugo da escravidão” (Gal. 5,1ss). Cristo, Verbo eterno feito homem, por Quem todas as coisas foram feitas, significa a plenitude da criação. Essa lei primordial está tão perfeitamente impressa no Seu coração, que Ele é a plenitude da Lei, isto é, de todo o plano e vontade de Deus acerca dos homens. Para os cristãos, Cristo é a Lei, porque é o caminho, a verdade e a vida.
3. Uma questão se põe à cultura e à organização das sociedades: em que medida é que todas as leis devem ser aplicação dessa lei primordial, para poderem ser caminho para o homem, caminho de justiça e de harmonia. Este é um problema cultural, na medida em que essa lei natural, comum a todos os homens, constitui um património comum universal, presente em todos os povos e culturas e subjacente a todas as religiões. Em cada cultura esse património universal ganha forma na ordem de valores que constituem a identidade própria de uma comunidade.
No nosso tempo, marcado pela convivência, cada vez mais intensa, entre povos e culturas, a identificação deste “universal humano” pode ser decisivo para a construção da justiça e da paz. Hoje os responsáveis pelas Nações, além do dever de fazerem leis justas e humanamente correctas, estão preocupados, e com razão, com a destruição do sentido da lei como base da convivência. Mas é ainda mais grave quando se destrói esse património primordial gravado no coração do homem: conjunto de valores, inerentes ao sentido de responsabilidade, constitutivos da dignidade da consciência. A anomia tem sempre como antecedente, por vezes longínquo, a destruição desse património original da dignidade da consciência. Esta é uma batalha que se trava no campo da educação e da cultura, mas também na lucidez e na clareza humanista dos princípios com que se rege a Cidade. Os cristãos têm de estar na primeira linha dessa batalha, onde se ganha ou se perde a humanização da sociedade.
Estamos aqui, neste dia da Abertura Solene do Ano Judicial, para implorar a luz e a protecção de Deus para todos aqueles e aquelas que estão empenhados na construção da justiça. Que Deus abençoe a todos.
Sé Patriarcal, 29 de Janeiro de 2008
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
In Agência Ecclesia.

Sem comentários: