No nosso país assistimos, não raro, à maquiavélica tendência de “inventar a roda” como se não houvesse por esse mundo fora, especificidades mais específicas do que as nossas, como se a nossa forma de trabalhar e pensar fosse a mais original de entre todas as originais que conhecemos e, decerto, a mais original do que aquelas que nem fazemos a mínima ideia que existem.
Por este motivo a nossa legislação processual está cheia de remendos e buracos, reflexo de uma obra qualquer de regime, uma ideia de um secretário de estado, um impulso de um ministro, uma rectificação, afinal, de uma revisão mal consumada. O Processo Civil sofreu já, por isso, 29 revisões desde 1995 e o Processo Penal 20 desde 1987.
Ao lado destes dois diplomas, multiplicam-se Regulamentos e Portarias que desenvolvem (ou nem por isso) aspecto parciais de um artigo específico, ou de uma parte deste e que, por um motivo ou por outro, se entendeu não terem dignidade suficiente para que constassem do texto principal e ocupassem os buracos que se vão multiplicando a cada revisão.
As revisões legislativas seguem as tendências da moda. Só não se orientam por cores. Orientam-se por casos concretos. Não há, aliás, grande volta a dar-lhe, como se costuma dizer. Se não é um caso específico pendente nos tribunais que motiva uma grande alteração num diploma, é o caso específico de um conjunto de profissionais que entende que determinado assunto deveria ser tratado de outra maneira, o caso específico de um estudo encomendado para concluir pela elevada pendência de processos nos tribunais, o caso específico de um conjunto de litigantes de massa (ou mass-litigation) que leva à conclusão de que as portas do acesso à justiça devam ser mais dificultadas para estes.
Não existe por isso, um conceito estruturado de processo em Portugal e ninguém ainda se preocupou neste país em pensar qual o regime processual base que deve ser implementado, a curto, médio e/ou longo prazo, mesmo que nessa base se abarquem as especificidades do processo civil ou do processo penal em duas valências distintas. E este raciocínio vale contra todos os pactos de justiça. O que vigora (?) e os que se lhe seguirão, mesmo que a ele se não siga nenhum em especial.
E, no entanto, é relativamente fácil compreender a cor da moda dominante na justiça portuguesa, ou seja, e como acima se disse, o caso concreto.
Dá-se, por consequência, o caso de a generalidade das classes (ou ordens, ou corporações, ou associações, ou que quer que se lhe queira chamar) entenderem que há, em Portugal processos a mais nos Tribunais. Ou seja, há justiça a menos porque há processos a mais. Não sei se o problema pode ser visto com esta linearidade, com esta simplicidade. Mas é, sem qualquer dúvida, a cor da moda. E, sobretudo, a cor dominante. Mais do que isso, é uma nódoa que urge resolver rapidamente.
E como nódoa que é dispensa-se o tratamento adequado, cuidando o sistema que este tipo de abordagem facilitará trilhar o caminho que nos levará à glória judiciária. Ou seja, eliminada a nódoa dos processos a mais, a justiça exultará porque se tivermos menos justiça (leia-se, menos processos) ela terá melhor qualidade dada a disponibilidade de tempo dos Senhores Magistrados, dos Senhores Advogados e dos Senhores Funcionários de Justiça para acorrer a quem, na realidade, precisa de recorrer aos Tribunais.
Não creio, porém, que seja este o caminho sobretudo porque ele implica mexer num direito fundamental (o acesso à justiça que tem de ser garantido a todos os cidadãos, com todas as consequências que este acesso inequivocamente implica) mas, sobretudo, porque não me parece que se possa apenas olhar para estatísticas sem compreender o que está para além dos números.
É como querer mergulhar numa piscina querendo ficar apenas à superfície da água. Até pode resultar nos primeiros segundos mas durará pouco tempo até que o corpo contacte com águas mais profundas.
Se vislumbrarmos as recentes revisões processuais (de relevo), verificamos que uma delas (a do processo civil) visa frontalmente a limitação de acesso aos tribunais superiores com o argumento da excessiva pendência nestes tribunais e da existência de abusos na utilização de mecanismos de recurso, ao passo que outra (a do processo penal) visou apenas verter na lei o exemplo de um caso concreto (mediático) procurando que não acontecesse mais o que terá acontecido (de mal) nesse processo.
Num dos casos consegue perceber-se o que este país pretende para o processo civil: menos recursos nos tribunais superiores e nos casos em que os recursos sejam permitidos recursos enormes, ou seja, com maior dificuldade de análise por parte dos Senhores Desembargadores e/ou Conselheiros o que implica, obviamente (só não vê quem não quer ver) menores possibilidades de procedência (ou seja, e nalguns casos, pior Justiça) dada a tendência de simplificar o que é complexo, tendência essa que não se revê com reformas processuais.
No processo penal, porém, não se compreende bem para onde se pretende evoluir, dado que as alterações, desgarradas e com paradigma difuso não parecem orientar-se por uma qualquer tendência clara, o que aumenta as dificuldades de interpretação e aplicação e, aliás, é adequado à interpretações avant la lettre que, em vez de simplificarem as pendências as densificam com o consequente número dos recursos.
Ou seja, atinge-se aqui o inverso do que se pretende no processo civil que terá, como consequência, a prazo, a revisão do sistema de “acesso” aos recursos no sentido de se limitar, também no processo penal, o acesso aos tribunais superiores.
E isto será assim até ao dia em que se traçar uma estratégia concreta (e definida) sobre o que quer este país do seu sistema de justiça. É que, não tenham dúvidas. Hoje há processos a mais e férias a mais. Mas amanhã, com processos a menos e férias a menos, há Juízes a mais e oficiais de justiça a mais. Porque Advogados a mais é algo que ouvia já quando aqui cheguei. E já lá vão uns anitos!
Retirado do Blog Horizonte Jurídico.
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