Excerto da intervenção de António Vitorino na RTP
«JUSTIÇA: CRIAR CONFIANÇA NOS CIDADÃOS
RTP - Resta-nos o Congresso da Justiça, porque estamos, aparentemente, num beco sem saída, ou seja, realiza-se o congresso dos juízes, o Presidente da República reconheceu que os magistrados trabalham em condições difíceis, o presidente do Supremo disse ao Governo que era importante que ouvisse as palavras de Jorge Sampaio, o primeiro-ministro não gostou e veio dizer que quem governa é o Governo e, o ministro foi ao Congresso, não foi aplaudido, foi ouvido em silêncio num ambiente muito tenso, muito desagradável, ou seja, como é que vamos sair desta crise na Justiça?
AV - Eu acho que, em primeiro lugar, este ambiente de crispação não é útil e causa uma enorme perplexidade nos cidadãos porque, sobretudo, o que os cidadãos têm consciência, é de que, algo vai mal no sector da Justiça. Os cidadãos têm consciência de que a Justiça é lenta e muitas vezes quando chega já é ineficaz e, naturalmente, esperam que haja uma saída para esta situação. De algum modo, o debate ficou um pouco prisioneiro da questão das férias judiciais. A questão essencial é que não se deve apresentar a questão das férias judiciais como a resposta ao problema da lentidão da Justiça. Isso é um equívoco manifesto.
A QUESTÃO DAS FÉRIAS JUDICIAIS
RTP - Mas não foi isso que o Governo fez?
AV - Se calhar exagerou, não tanto por ter adoptado a posição que tomou sobre as férias judiciais, mas por ter isolado essa questão das férias judiciais, conferindo-lhe um aspecto emblemático que, de alguma forma, não resolve os problemas de fundo da Justiça portuguesa. Mas também devo dizer que há exagero do outro lado quando ouço os magistrados dizerem que a questão das férias judiciais põe em causa a independência da magistratura. Parece-me que se está a fazer um uso abusivo do valor fundamental do Estado de Direito democrático que é a independência da magistratura, quando se quer reconduzir a questão da independência da magistratura à autonomia financeira do Conselho Superior da Magistratura. Há muitos países que têm auto-governo dos juízes e que não têm autonomia financeira. Eu creio que esse tipo de debate não ajuda a criar confiança nos cidadãos em relação ao futuro da Justiça e, sobretudo, não ajuda a criar o ambiente necessário para encontrar soluções de fundo para os problemas da Justiça.
RTP - Então como é que se sai disto?
AV - Eu não sei se a solução é um pacto de regime – segundo o PSD – porque os pactos de regime aparecem, muitas vezes, como uma longa lista de medidas. Acho que o que haveria de se encontrar eram motivos de confiança em torno de objectivos muito concretos e imediatos. Eu sugiro três: o primeiro é, de facto, o debate sobre as prioridades da política criminal. Creio que isso é um bom teste à capacidade de o sector político, o mundo político e o mundo judiciário poderem encontrar uma plataforma de acordo sobre o que são as principais prioridades.
RTP - Mas a Procuradoria-Geral da República vem dizer que não tem condições de funcionamento. Que a Direcção Central de Investigação e de Acção Penal, da dra. Cândida de Almeida, não funciona...
AV - E se calhar é verdade. Só que, para nós, o discurso da falta de meios é um discurso circular. Nós temos de saber que meios temos, como os racionalizamos e para que é que os racionalizamos. Se não houver prioridades claras definidas, nós não sabemos os meios que são necessários e responsabilizamos quem tem que fornecer os meios, por eles existirem, e pelos resultados que são produzidos pela utilização desses meios. O segundo objectivo, em meu entender, e parece-me igualmente importante, é o objectivo da desjudicialização de uma série de acções. Nós dependemos muito dos tribunais. Há uma série de meios alternativos de resolução de litígios que podem e devem ser utilizados para não sobrecarregar os tribunais. É o caso do anúncio do princípio das falências na hora, isto é, retirar os processos das insolvências do moroso procedimento judicial e criar formas alternativas exteriores ao mundo judicial para tornar mais célere o processo das falências, como já aconteceu em relação, por exemplo, às dívidas de pequena monta, que podem ser resolvidas extrajudicialmente. Terceira sugestão, o mapa judiciário. Acho que é inadiável a revisão do mapa judiciário. Nós temos um número de juízes, ‘per capita’ por cidadãos, relativamente equiparável à média europeia. A sua distribuição no território nacional e a sua afectação aos tribunais que estão sob maior pressão de litigância é que, provavelmente, estão desequilibradas. Isso implica algumas decisões difíceis: extinguir algumas comarcas, extinguir alguns tribunais e reorientar para os tribunais que têm maior afluência de processos um número reforçado de juízes. Aí estão três exemplos concretos de medidas prioritárias que podem fazer a diferença no curto prazo, e sobre as quais eu acredito que é possível alcançar rapidamente um consenso entre o mundo político e o próprio mundo judiciário. Não só os juízes e os magistrados, mas também os advogados. Convém não esquecer que os advogados são uma peça do mundo judiciário tão importante quanto as magistraturas.
RTP - Mas primeiro há que acabar com este gelo.
AV - O gelo quebra-se, a meu ver, de duas maneiras. Ou pela sedução e, eu não sei se estamos ainda em tempo de sedução, ou então através do pragmatismo. E o pragmatismo, neste caso, é encontrar uma agenda sobre temas concretos e resolvê-los no curto prazo. É assim que se cria confiança».
In Diário Económico, 30/11/2005.
RTP - Resta-nos o Congresso da Justiça, porque estamos, aparentemente, num beco sem saída, ou seja, realiza-se o congresso dos juízes, o Presidente da República reconheceu que os magistrados trabalham em condições difíceis, o presidente do Supremo disse ao Governo que era importante que ouvisse as palavras de Jorge Sampaio, o primeiro-ministro não gostou e veio dizer que quem governa é o Governo e, o ministro foi ao Congresso, não foi aplaudido, foi ouvido em silêncio num ambiente muito tenso, muito desagradável, ou seja, como é que vamos sair desta crise na Justiça?
AV - Eu acho que, em primeiro lugar, este ambiente de crispação não é útil e causa uma enorme perplexidade nos cidadãos porque, sobretudo, o que os cidadãos têm consciência, é de que, algo vai mal no sector da Justiça. Os cidadãos têm consciência de que a Justiça é lenta e muitas vezes quando chega já é ineficaz e, naturalmente, esperam que haja uma saída para esta situação. De algum modo, o debate ficou um pouco prisioneiro da questão das férias judiciais. A questão essencial é que não se deve apresentar a questão das férias judiciais como a resposta ao problema da lentidão da Justiça. Isso é um equívoco manifesto.
A QUESTÃO DAS FÉRIAS JUDICIAIS
RTP - Mas não foi isso que o Governo fez?
AV - Se calhar exagerou, não tanto por ter adoptado a posição que tomou sobre as férias judiciais, mas por ter isolado essa questão das férias judiciais, conferindo-lhe um aspecto emblemático que, de alguma forma, não resolve os problemas de fundo da Justiça portuguesa. Mas também devo dizer que há exagero do outro lado quando ouço os magistrados dizerem que a questão das férias judiciais põe em causa a independência da magistratura. Parece-me que se está a fazer um uso abusivo do valor fundamental do Estado de Direito democrático que é a independência da magistratura, quando se quer reconduzir a questão da independência da magistratura à autonomia financeira do Conselho Superior da Magistratura. Há muitos países que têm auto-governo dos juízes e que não têm autonomia financeira. Eu creio que esse tipo de debate não ajuda a criar confiança nos cidadãos em relação ao futuro da Justiça e, sobretudo, não ajuda a criar o ambiente necessário para encontrar soluções de fundo para os problemas da Justiça.
RTP - Então como é que se sai disto?
AV - Eu não sei se a solução é um pacto de regime – segundo o PSD – porque os pactos de regime aparecem, muitas vezes, como uma longa lista de medidas. Acho que o que haveria de se encontrar eram motivos de confiança em torno de objectivos muito concretos e imediatos. Eu sugiro três: o primeiro é, de facto, o debate sobre as prioridades da política criminal. Creio que isso é um bom teste à capacidade de o sector político, o mundo político e o mundo judiciário poderem encontrar uma plataforma de acordo sobre o que são as principais prioridades.
RTP - Mas a Procuradoria-Geral da República vem dizer que não tem condições de funcionamento. Que a Direcção Central de Investigação e de Acção Penal, da dra. Cândida de Almeida, não funciona...
AV - E se calhar é verdade. Só que, para nós, o discurso da falta de meios é um discurso circular. Nós temos de saber que meios temos, como os racionalizamos e para que é que os racionalizamos. Se não houver prioridades claras definidas, nós não sabemos os meios que são necessários e responsabilizamos quem tem que fornecer os meios, por eles existirem, e pelos resultados que são produzidos pela utilização desses meios. O segundo objectivo, em meu entender, e parece-me igualmente importante, é o objectivo da desjudicialização de uma série de acções. Nós dependemos muito dos tribunais. Há uma série de meios alternativos de resolução de litígios que podem e devem ser utilizados para não sobrecarregar os tribunais. É o caso do anúncio do princípio das falências na hora, isto é, retirar os processos das insolvências do moroso procedimento judicial e criar formas alternativas exteriores ao mundo judicial para tornar mais célere o processo das falências, como já aconteceu em relação, por exemplo, às dívidas de pequena monta, que podem ser resolvidas extrajudicialmente. Terceira sugestão, o mapa judiciário. Acho que é inadiável a revisão do mapa judiciário. Nós temos um número de juízes, ‘per capita’ por cidadãos, relativamente equiparável à média europeia. A sua distribuição no território nacional e a sua afectação aos tribunais que estão sob maior pressão de litigância é que, provavelmente, estão desequilibradas. Isso implica algumas decisões difíceis: extinguir algumas comarcas, extinguir alguns tribunais e reorientar para os tribunais que têm maior afluência de processos um número reforçado de juízes. Aí estão três exemplos concretos de medidas prioritárias que podem fazer a diferença no curto prazo, e sobre as quais eu acredito que é possível alcançar rapidamente um consenso entre o mundo político e o próprio mundo judiciário. Não só os juízes e os magistrados, mas também os advogados. Convém não esquecer que os advogados são uma peça do mundo judiciário tão importante quanto as magistraturas.
RTP - Mas primeiro há que acabar com este gelo.
AV - O gelo quebra-se, a meu ver, de duas maneiras. Ou pela sedução e, eu não sei se estamos ainda em tempo de sedução, ou então através do pragmatismo. E o pragmatismo, neste caso, é encontrar uma agenda sobre temas concretos e resolvê-los no curto prazo. É assim que se cria confiança».
In Diário Económico, 30/11/2005.
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