Os temas escolhidos por Marcelo
«O primeiro tema de que quer falar é a justiça. Sim, a libertação de Carlos Silvino, com cobertura televisiva, interrompendo-se as programações, não em todos os canais, mas em vários generalistas. Muita gente ficou surpreendida e disse "Então o homem é posto lá fora depois de ter confessado que cometeu determinados crimes, depois de um ano de julgamento. Como é possível?" É possível, porque a lei assim o determina. É a lei que diz que os arguidos podem indicar o número de testemunhas que queiram - e foram indicadas 700 . E é a lei que determina que ao fim de x tempo de prisão preventiva sem condenação, sem decisão final de um julgamento, seja libertado o arguido. Portanto, é um problema da lei. É bom que haja uma capacidade de informar a comunicação social e a opinião pública. Lá fora, os tribunais têm e cá terão de ter porta-vozes, juízes, que esclareçam o que se passa em termos comezinhos, trocando por miúdos, para que as pessoas percebam. Foi infeliz a especulação televisiva em torno da libertação. Noticiar nos telejornais é uma coisa, outra é interromper a programação para dar, em directo, a libertação. Com o devido respeito, parece-me uma inversão da lógica e da importância das coisas. Indo a outra questão, a polémica que vem de trás, que se agravou e que continua tensa e intensa entre Governo e juízes. Têm os dois de ter juízo. E concordo com o que disse Cluny, do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, quando defende um consenso de regime. A justiça tem sido sistematicamente adiada. Houve outras prioridades a descolonização, a democratização, a integração europeia, a construção de uma nova economia. A justiça, como a reforma da administração pública, passaram a ser prioridades há poucos anos, e na cabeça das pessoas ainda não o são. É bom que seja prioridade e que seja em termos de consenso de regime. O que significa que o Governo tem de mudar a postura agressiva que tomou desde o início em relação aos juízes. Eu compreendo que o Governo tem uma má fase para viver, que é da crise económica e financeira, e que é útil desviar a atenção dizendo que há privilegiados e poderosos que são bodes expiatórios e batemos neles. E a história das férias foi um bocadinho isto... Eu critiquei porque se ficava com a ideia de que a justiça está como está por causa das férias dos juízes. Hoje, o ministro da Justiça reconheceu que não será possível reduzir para um mês as férias dos juízes. Por causa dos turnos têm de ser, pelo menos, 45 dias. A greve foi uma má ideia. Os juízes, como titulares de órgãos de soberania, têm de se colocar nesse plano e não dos sindicalistas. O consenso sobre questões fundamentais é facílimo, porque o diagnóstico ou está feito ou faz-se rapidamente. E quanto às medidas concretas - dentro da parcimónia da limitação dos meios - é fácil dizer quais são as medidas e não há grandes questões ideológicas a pô-las em causa. No congresso dos juízes percebeu-se que uma tecnologia, adoptada por todos, é um salto em frente, porque permite, nos julgamentos, filmar, gravar e estenografar digitalmente em tempo real. Não imagina as horas, os dias e as semanas que se ganha. Um acordo sobre coisas concretas, mas muito importantes, é o que os portugueses querem. O País está como está, não vale a pena crispar mais. Outro tema que escolheu foi o aniversário da função europeia de Durão Barroso. Eu diria que começou muito mal, para não dizer pessimamente, e melhorou. Durão Barroso deixou um pandemónio cá. A interrupção da legislatura teve consequências e na altura não se percebia tanto. Hoje percebe-se o que isso foi negativo. Depois deixou a divisão no partido e deixou um primeiro-ministro que não foi pacífico na própria área de apoio. Mas lá mesmo, ele não começou bem. Teve a viagem insensata com o amigo grego, o caos dos porta-vozes, com cada comissário a falar para seu lado. Depois teve azar. Calhou-lhe em cima o referendo francês contra a Constituição europeia, que ele defendia, o referendo holandês. A continuação da crise económica, os défices em pequenos e médios países, mas também nos grandes. O pacto de estabilidade a não ser cumprido. A Comissão com dificuldade em impor-se. A negociação com a China, que começou uma coisa mas depois os chineses obrigaram a recuar um bocadinho, porque já havia têxteis que estavam nas fronteiras da Europa e tiveram de ser engolidos, por conta da quota do ano que vem. Correu-lhe bem a relação com o amigo Bush, mas isso sabia-se, e com Putin. Esta foi a primeira parte - horrível - do ano. A segunda parte começou com boas notícias. O senhor Chirac, de quem ele não gostava nada e que não gostava nada dele, começou com dificuldades em França. O senhor Shroeder foi à vida, e também não era dos grandes. Foi apoiante dele mas tinha reservas em relação ao seu atlantismo excessivo. A situação económica começou a melhorar um bocadinho, foi desbloqueada a negociação com a Turquia, a Comissão passou a funcionar mais direitinha, a sugestão que ele fez para um pacto das regiões deprimidas foi bem acolhida. Houve coisas negativas. O amigo Blair entrou na fase final do mandato e as sondagens são péssimas, o amigo Bush entrou na fase final do mandato, mas se não for Bush haverá sempre um amigo americano. Também não foi muito boa esta discussão do Orçamento comunitário, mas eu penso que se chega a um acordo sobre os fundos comunitários em Dezembro. Eu diria que começou muito mal, tendo vindo a melhorar. Durão Barroso é muito teimoso e resistente. E, nesse sentido, vai resistindo, leva uma, duas, três, quatro, cinco, mas vai resistindo. O que faz toda a diferença, porque o cenário lógico em relação a alguém que teve os lugares dele é ser candidato presidencial, e provavelmente ser daqui a dez anos é mais seguro que daqui a cinco. Sobre o plano tecnológico. Boa malha, a ideia de, em crise, pensar-se a médio, longo prazo. Má malha, o facto de que o Governo precisa de dar o exemplo na administração. Até para convencer a sociedade civil. A inovação tem de começar na administração pública, onde a inovação tecnológica é mais difícil. A Ota. Volto a lamentar os estudos só serem apresentados depois de o Governo ter anunciado que já tinha tomada a decisão. Fica-se com a sensação, não é deste Governo é do passado, que várias decisões foram dificultando a hipótese da expansão da Portela. Porque não a hipótese Portela-Alverca? Há um estudo sobre o turismo de Lisboa, fica a dúvida se Lisboa não vai sofrer com a nova localização do aeroporto. A grande dificuldade são as entradas de Lisboa. Tem de se pensar em fazer qualquer coisa. Nós sabemos o que isso é. O adiamento do TGV pode dar um problema àquele sonho de ter de 25 em 25 minutos um comboio pendular que ligue directamente lá. Uma dúvida mais funda não resulta claro se há possibilidade de expansão da Ota, se continuar o crescimento do tráfego aéreo. A Ota, aparentemente, tem problemas de limitação de espaço já apreciáveis. Se é preciso fazer a expansão, a Ota aguenta? Se não aguenta, não é um investimento brutal? Depois, há a questão do financiamento. Isto é financiado por privados. Só 10% são públicos. 10% ainda são 60 milhões de contos. Mas o que eu não tinha percebido é que os privados só alinham nisto (com um endividamento brutal) com a rentabilização da exploração de todos os aeroportos portugueses. Vai haver uma privatização, primeiro parcial depois total, da ANA, ficando a explorar todos os aeroportos portugueses a empresa que ganhar o aeroporto da Ota. Isto é uma questão que levanta problemas, há bens públicos que vão ser privatizados, isto vai ser o concurso da década. Vão ser criados cinquenta e tal mil lugares de trabalho, directos e indirectos. Mas cheira a demagogia, porque não é já. Depois, há duas notas: o começo das obras calha numa boa altura para o Governo, 2009, ano de eleições. Foi a providência divina que iluminou no sentido de ser o caso. E um lamento: Tenho pena que não sejam obras de regime. Tenho pena que seja o PS de um lado e o PSD do outro. É que já não será Sócrates a inaugurar, em 2017, este aeroporto. É uma pena que não tenha havido um esforço de consensualização de regime, porque no fundo vão ter de estar todos a tratar disso».
In Diário de Notícias, 29/11/2005.


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