«A Sopa Esturrada»
«Na minha última crónica, abordei o assunto da deturpação de certas decisões judiciais pela Imprensa, começando por me referir ao célebre caso da mulher que deixou esturricar a sopa e que foi morta pelo marido. Pois, nesse mesmo dia, à noite, ouvi o dr. Francisco Louçã, numa reportagem televisiva sobre o congresso (ou seminário) das mulheres vítimas de violência doméstica, falar exactamente nesse caso, trazendo à baila o esturro da sopa como atenuante em que se arrimou o Supremo Tribunal de Justiça ("reparem o Supremo Tribunal de Justiça" - sublinhou o dr. Louçã) para baixar a pena ao homicida. Por outro lado, o Supremo não valorizou (negativamente) no homicídio, disse o dr. Louçã, os maus-tratos infligidos pelo homem à mulher. Não assinei o acórdão (de contrário não falaria nele), mas li-o com toda a atenção, e devo dizer que acho surpreendente que o dr. Louçã, um dos candidatos à Presidência da República, tenha vindo bater a tecla (já desafinada de tanto bater) da sopa esturrada. É que essa sopa esturrada vinha de facto na matéria provada no tribunal recorrido, que o Supremo incorporou no seu acórdão, mas que expressamente arredou como atenuante com influência para fazer baixar a pena. Como é que o dr. Louçã continua a dar a cheirar o esturro desta sopa? E quanto à valorização dos maus-tratos, estes foram punidos como crime autónomo (aliás, também a própria vítima usou de violência para com o homem, passando a culpá-lo sem motivo pela morte de uma filha, cujo desaparecimento trágico causou uma depressão profunda no casal). Como é que esses maus-tratos podiam então valorizar negativamente o crime de homicídio, sem se violar o princípio de que um cidadão não deve ser condenado duas vezes pelo mesmo facto? Enfim, o dr. Louçã terá lido o acórdão ou limitou-se, como tantos outros, a falar do que leu nos jornais?»
Artur Costa, In Jornal de Notícias, 01/12/2005.
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