«O Novo Regime do Arrendamento Urbano - uma nova “lei das rendas”? (I)»
Por João Torroaes Valente, Advogado, In Diário Económico.
«Parece correcta a conclusão de que “a nova lei ataca mais a renda e menos o contrato”, constituindo, uma nova “lei das rendas”.
Após décadas de sucessivas alterações e pretensas reformas do Regime do Arrendamento Urbano ainda vigente (RAU), é indubitável que o mercado de arrendamento continua paralisado, ao mesmo tempo que os centros urbanos se degradam, fruto do baixo nível de rendimento associado aos arrendamentos antigos, tendencialmente perpétuos. Em Portugal, mais de 50% dos contratos de arrendamento urbano vigentes são anteriores a 1990, sujeitos ao habitualmente designado “regime vinculístico”. O “vinculismo” exprime um conjunto de regras que, historicamente, se têm vindo a cumular paulatinamente ao sabor das diversas crises da habitação do século XX, com o fito de proteger o arrendatário. Este conjunto de regras visou impedir que problemas de conjuntura económico-social (maxime a inflação e os baixos salários) fossem repercutidos nas classes médias urbanas, sendo o impacto inerente suportado pelos proprietários (senhorios). No entanto, a conjuntura económico-social que justificou estas medidas alterou-se significativamente na última década com base em factores como o aumento do nível de vida e as facilidades de acesso ao crédito, tendo provocando um ‘superavit’ de oferta em termos imobiliários. Por outro lado, proliferam os prédios devolutos ou desaproveitados que, em razão do desconforto causado pelo “vinculismo” aos proprietários, não são encaminhados para o mercado do arrendamento. Desde a reforma de 1990 – que deu origem ao RAU – até 2004, mantiveram-se praticamente intocados os arrendamentos “vinculísticos”. Entretanto, o Governo (PSD-PP) fez aprovar em Novembro de 2004 o então designado “Regime do Novo Arrendamento Urbano” (”RNAU”), o qual foi objecto de severas criticas em razão da instabilidade que, subitamente, poderia lançar em situações de arrendamentos muito antigas, tendo – com a crise política – soçobrado com o Governo que esteve na sua génese. É neste contexto que, no passado dia 27 de Fevereiro, o executivo presentemente em funções fez publicar a Lei 6/2006, correspondente ao agora designado “Novo Regime do Arrendamento Urbano” (”NRAU”). Impõe-se então passar em revista algumas das mais relevantes mudanças trazidas por esta reforma, especialmente ao nível dos arrendamentos comerciais (agora designados não habitacionais). Na linha do que já sucedia em sede de RNAU, as partes poderão, a partir de agora, livremente determinar o conteúdo deste tipo de contratos de arrendamento, designadamente em matéria de prazo de vigência, regime de denúncia e de oposição à renovação. A este propósito, registe-se a intenção de regulamentação legal dos “contratos de utilização de espaços em centros comerciais”, o que deverá ocorrer no prazo de 180 dias contados desde a data de publicação do NRAU. Em matéria de resolução contratual, sublinhe-se o facto de, em determinadas situações (p.e. nos casos de mora no pagamento de renda, encargos ou despesas superior a 3 meses), o senhorio deixar de necessitar recorrer à acção judicial de despejo para colocar termo ao contrato de arrendamento, podendo a resolução operar designadamente mediante simples comunicação enviada ao arrendatário por advogado ou solicitador. No que respeita a disposições transitórias, merece destaque o mecanismo objectivo de actualização de rendas agora previsto para os arrendamentos habitacionais anteriores a 1990, o qual conjuga o valor de avaliação fiscal de cada imóvel com o coeficiente de conservação do mesmo. Diferentemente, nos arrendamentos não habitacionais anteriores a 1995, a renda poderá ser actualizada independentemente do nível de conservação de cada imóvel. Neste contexto, sendo o coeficiente de conservação do imóvel mau ou péssimo, o arrendatário poderá, de acordo com o NRAU, intimar o senhorio para realizar obras. Caso o senhorio não execute as referidas obras, o arrendatário poderá optar por comprar o locado pelo valor resultante da avaliação fiscal efectuada. Esta novidade, apesar de ainda aguardar regulamentação a publicar, levantou já forte polémica, tendo sido inclusive levantadas dúvidas quanto à sua constitucionalidade. Por outro lado, a partir da entrada em vigor do NRAU, o trespasse, locação de estabelecimento comercial ou alteração da titularidade de mais de 50% das participações sociais da sociedade arrendatária existentes à data da entrada em vigor do NRAU, conferem ao senhorio a prerrogativa de denunciar o contrato mediante pré-aviso efectuado com 5 anos de antecedência (possibilidade afastada pelo regime transitório supra referido para os contratos anteriores a 1995 com vista a proteger os respectivos arrendatários), e de exigir a actualização imediata da renda, perdendo, nesse caso, o arrendatário o direito ao faseamento da actualização extraordinária da renda. Esta alteração coloca termo aos “trespasses fraudulentos”, nos quais o activo efectivamente objecto de transacção correspondia ao direito ao arrendamento (renda baixa) e não – conforme seria expectável – o estabelecimento comercial (i.e. o negócio), impedindo ainda que estes arrendamentos continuem a vigorar eternamente, conforme até agora sucedia em sede de RAU. Por último, foi grande a estranheza causada com a manutenção do direito de preferência do arrendatário na venda do imóvel pelo respectivo senhorio e com o seu alargamento aos arrendamentos de prazo certo, uma vez que este tipo de direitos consubstancia um verdadeiro travão ao desenvolvimento do mercado de imóveis arrendados, sendo fonte de enormes prejuízos para os proprietários. Passadas em revista algumas das principais inovações desta reforma, fácil é concluir que se procurou dotar os senhorios de mecanismos de correcção das injustiças acumuladas durante as últimas décadas, permitindo-lhes paulatinamente actualizar rendas indignas e passar a dispor dos meios financeiros necessários à reabilitação do seu património, sem colocar no imediato e directamente em causa os contratos de arrendamento vigentes. Assim sendo, diferentemente do que sucedia no projecto de RNAU (mais arrojado relativamente aos contratos de pretérito), parece correcta a conclusão de que “a nova lei ataca mais a renda e menos o contrato”, constituindo, neste contexto, uma nova “lei das rendas”»
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