A culpa é sempre dos outros?
Por Vicente Jorge Silva, In DN.
Têm-me perguntado insistentemente o que penso do já célebre livro de Manuel Maria Carrilho. Acontece que na Madeira, onde me encontro há mais de dez dias, nenhuma livraria o recebeu ainda, apesar de todo o lastro de furor mediático que acompanhou o seu lançamento, e que justificaria decerto uma maior destreza de distribuição por parte da respectiva editora em todo o território nacional. Do livro, portanto, sei apenas o que li nos jornais e (ou)vi na televisão, mas fiquei convencido, pela rapidez estonteante das reacções, que muitos dos supostos leitores de Carrilho poderiam estar também na Madeira como eu. Em qualquer caso, não tenho opinião sobre o que (ainda) não conheço e, por isso, limito-me a reflectir sobre o tema proposto no Prós e Contras de anteontem à noite na RTP. É um tema cuja pertinência se coloca muito para além dos argumentos orais e presumo que escritos invocados por Carrilho ou das suas teses conspirativas. E mesmo que Carrilho aja apenas por ressentimento, cegueira e incurável narcisismo, o pior que os que acreditam ainda na nobreza do jornalismo poderiam fazer era não assumir que o eco excepcional que o livro encontrou nos media reflecte, ironicamente, os sintomas de uma doença grave dos próprios media. Vivemos, de facto, num clima de promiscuidade crescente, perversa e quase irrespirável entre o sistema político e o sistema mediático, e nessa promiscuidade não existem actores verdadeiramente inocentes, como lembrou Pacheco Pereira (ele próprio, aliás, um dos comentadores e agentes políticos mais insinuantes, com presença semanal em duas colunas na imprensa escrita e num programa de debate na televisão). Acresce que a promiscuidade entre os dois sistemas é agravada pela degradação dos padrões éticos e técnicos do jornalismo e pela mediocridade e vazio da vida política. Um ambiente extremamente propício, portanto, aos pescadores de águas turvas que fazem o contrabando entre os dois lados (papel atribuído a agências de comunicação e assessores governamentais ou partidários). Se a isto somarmos a porosidade cada vez maior entre os negócios económicos e políticos, com uma malha apertada de troca de favores, o quadro está quase completo. Ficam ainda a pairar outras suspeitas de corrupção sórdida entre os vários elos da cadeia - pretexto para generalizações abusivas e inverosímeis (como pretendeu fazer Carrilho na RTP) mas que a engrenagem da promiscuidade institucionalizada favorece.
A degenerescência dos media como indispensável contrapoder democrático não é, longe disso, uma originalidade pátria, mas a escala diminuta do mercado interno, o peso da iliteracia e os efeitos corrosivos da crise económica tornaram Portugal particularmente vulnerável a essa deriva. A espiral avassaladora e quase generalizada da tabloidização informativa (que se acelerou com o aparecimento quase selvagem e desregulado das televisões privadas) teve como contraponto a perda de referências e equilíbrio editorial de alguns órgãos mais influentes da imprensa portuguesa. Tem-se assistido aí, nos últimos anos, a uma "balcanização" entre áreas de influência política e ideológica, com prejuízo e desprezo crescentes do trabalho especificamente jornalístico (que se tornou, cada vez mais, um preguiçoso jornalismo "telefónico", grosseiramente dedutivo e especulativo, crescentemente vulnerável às fontes anónimas). O exercício gratuito e arrogante do poder mediático, as sentenças definitivas e justiceiras, desvirtuam qualquer preocupação com o rigor, a distância crítica, a imparcialidade e a objectividade da informação. O protagonismo dos jornalistas (directores, editores, redactores) substitui-se ao protagonismo das matérias e actores das notícias. Cada qual puxa para o seu lado e todos coexistem alegremente nas respectivas quintas, sendo o obsessivo missionarismo ideológico de uns "compensado" politicamente pelas opostas afinidades electivas de outros. E há quem reclame, para isto, a caução do "pluralismo"...
Carrilho pode não ter razão nenhuma - e, na verdade, não fez por tê-la no debate de anteontem. Mas a forma como hoje funciona uma grande parte da comunicação social portuguesa só contribui para que a sua "teoria da conspiração" ganhe eco e credibilidade na opinião pública. Ainda que por linhas tortas, o sucesso editorial do livro do candidato frustrado à Câmara de Lisboa já serviu para lançar um debate que uma arrogante nomenclatura jornalística se recusa persistentemente a fazer. Carrilho pretende que a culpa da sua derrota não foi dele - foi dos outros. Será dos outros também a culpa dos jornalistas que não fazem verdadeiro jornalismo?
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