sábado, fevereiro 03, 2007

António Cluny,Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, defende um maior controlo das contas públicas, da riqueza dos agentes da Administração e do Fisco como forma de prevenir o fenómeno da corrupção. E garante estar expectante em relação às propostas do Governo sobre esta matéria. O procurador questiona a Lei de Política Criminal, mas garante que o risco de politização da Justiça existe com qualquer ministro e com qualquer Governo.
Correio da Manhã – Houve um consenso alargado em relação à nomeação de Maria José Morgado para coordenar o processo o ‘Apito Dourado’. Foi uma decisão acertada? Que expectativas tem?
António Cluny – Não vou comentar se foi uma decisão acertada ou desacertada do procurador-geral (PGR). O que posso dizer é que é uma possibilidade que o PGR tem nos termos do estatuto do Ministério Público (MP), que não é a primeira vez que é usada – já foi usada em processos tão importantes como as FP25, o processo de Macau, o de Entre-os-Rios, entre outros – e que permite uma melhor coordenação, uma mais acelerada investigação e uma resposta que é considerada prioritária. O Estatuto aconselha num caso destes, tanto mais que há processos que são um pouco causa-efeito uns dos outros e era importante ter uma radiografia completa para produzir um resultado mais consistente.
– Há quem defenda uma mudança nos requisitos do crime de corrupção porque tal como está previsto no Código Penal é muito difícil de provar.
– Acho que o combate ao crime de corrupção ou ao fenómeno da corrupção não passa sempre pela área criminal. Passará por uma melhor coordenação entre organismos, como por exemplo o Tribunal de Contas, a Inspecção-Geral de Finanças... A corrupção é sempre um fenómeno de difícil prova. Podemos alterar a lei, melhorar aqui e acolá, mas do ponto de vista criminal, do ponto de vista da punição penal, é sempre residual. Onde nós devemos apostar, em meu entender, é em todo um conjunto de acções e de organismos que previnam o fenómeno, o que significa um controlo apertado das contas públicas, um controlo muito apertado da riqueza dos agentes da Administração, um controlo muitíssimo mais apertado a nível do Fisco, a nível das declarações de interesses, a nível da contratação pública... É nessa área que nós podemos travar a luta contra a corrupção, tendo sempre a ideia de que é fundamental também a repressão quando efectivamente se consegue provar que há casos concretos de corrupção.
– Muitas das ideias que acabou de enumerar foram defendidas por João Cravinho, mas elas não vão para a frente.
– E o engenheiro João Cravinho também não as inventou. O engenheiro Cravinho é uma pessoa com uma visão alargada do mundo europeu e tem o conhecimento de como as coisas funcionam em outros países. Gostaria de ter visto em Portugal um trabalho e uma coordenação e uma acção pelo menos tão bem feita como aquela que existe em outros países.
– Falta vontade política para combater a corrupção?
– Não sei se há falta de vontade política. O Governo diz que tem medidas e que tem propostas próprias. Ainda não foram anunciadas, estamos expectantes. Todos nós cidadãos estamos à espera que sejam apresentados planos consistentes para este combate. A corrupção não só afecta o desenvolvimento da economia e a credibilidade da nossa economia como afecta também os próprios valores do Estado e da convivência entre cidadãos. Acho que a Itália, apesar de tudo, tem alguma sorte. Em Itália, a máfia tem nome e nós dizemos: ‘Olha, aquele senhor é da máfia’. Em Portugal é mais complicado, não tem nome e como não tem nome nós não conseguimos identificar claramente quem é quem. E isto é dramático do ponto de vista da mobilização das vontades políticas e sociais para resolver a crise económica grave que o País atravessa.
– Esse combate também pode passar pela especialização de magistrados em grandes áreas de criminalidade, como a corrupção?
– Não só na corrupção. Penso que a especialização é um factor fundamental na formação e na estruturação das magistraturas. Mas o MP também tem de passar a tratar os assuntos como um dossiê, e este dossiê tem de ter uma solução. Isto é, nós não podemos dizer ‘temos aqui o problema penal, temos aqui o problema administrativo ou problema de família’, quando, por vezes, todos eles se articulam e o que é necessário é resolver o problema.
– As magistraturas têm falado em risco de politização da Justiça perante as propostas que têm sido anunciadas, designadamente em relação à Lei de Política Criminal. Continua a achar que, com este ministro e com as reformas em curso, há riscos de politização da Justiça?
– É sempre possível o risco da politização da Justiça com este ministro, com outro ministro, com qualquer ministro, com qualquer governo. Há sempre uma tensão que não nasceu com este ministro nem com este Governo, entre a independência do sistema judicial e a vontade política de orientar a investigação judicial, não só a investigação judicial, mas como tudo em função das políticas que se querem desenvolver. Há sempre esse perigo. Há modelos que estão a ser introduzidos que relevam efectivamente meios de concepções mais dirigistas do que os que tinham acontecido até hoje. Aprovar prioridades de política criminal, mais do que fazer correr o risco de uma politização da Justiça, pode introduzir factores de populismo.
– Está a falar nos tipos de crime prioritários?
– E não só. Porque eu posso dizer isto é prioritário, mas se não der os meios para que aquela investigação seja prioritária, posso estar a fazer um brilharete para a opinião pública. Ou seja, vir depois dizer: ‘Eu disse que era prioritário, eles não investigaram’. É a mesma coisa que eu dizer ‘eu dou prioridade à corrupção’ mas depois acabo com o DCIAP, reduzo o dinheiro para as perícias financeiras, ou não as aumento.
– Receia que isso aconteça?
– Acredito sinceramente que na nossa democracia não é possível isso acontecer facilmente.
– Mas acabou de dar exemplos.
– Eu dei exemplos teóricos. O que nós achamos é que quando o Governo apresentar as suas prioridades deve apresentar também o seu caderno de encargos. Deve dizer: tem de se investigar isto e para isto vou disponibilizar estes meios, que é para o Parlamento saber se àquela intenção de prioridade corresponde efectivamente uma vontade política de que a prioridade se torne real. Isto das prioridades tem muito que se lhe diga. E há logo um problema que acho complicado: é que a lei é aprovada num momento diferente da do Orçamento do Estado. Como é que nós sabemos que aquelas prioridades tiveram suficiente apoio orçamental para poderem ser desenvolvidas? Acho que não é através de leis que se criam prioridades de investigação criminal. Quando o Governo quer dotar determinadas áreas de prioridades, dota-as. No ‘Apito Dourado’, a partir de determinado momento, só a partir de determinado momento, começou a entender que aquilo era importante E aquilo que sempre tinha faltado ao dr. Carlos Teixeira – veículos, protecção, equipas – passou a ser disponibilizado.
– Porquê? Por causa da mudança do PGR?
– Não, o PGR não tem carros, nem polícias...
– A entrada do novo PGR ficou marcada pelo veto ao nome do vice-PGR. O Sindicato foi acusado de estar por trás deste veto.
– Em primeiro lugar, nessa votação o número de pessoas que foram eleitas em listas apoiadas pelo Sindicato era minoritário, portanto não tinha sentido essa afirmação. Em segundo, não comento afirmações de pessoas que não sei quem são.
– O próprio sindicato falou, na altura, em “intriga no seio do MP”. Quem é que quer desestabilizar o MP?
– Todos os interesses que se sentem afectados pela actuação do MP têm interesse em afectar a credibilidade e o prestígio de uma magistratura e nada melhor do que criar atritos internos. O MP desenvolve uma actividade que não é simpática, pelo menos para algumas pessoas, e naturalmente é alvo de intervenções fortes de quem se sente lesado... E quem se sente lesado pela sua intervenção, às vezes, tem poderes imensos, até de manipulação mediática, etc.. O sindicato, a certa altura, apercebeu-se de que vinha sendo criado um clima que visava lançar o PGR contra uma corrente maioritária de magistrados do MP que não tinha nenhum sentido.
– Da parte de quem? De onde?
– Não sei, eu apenas sentia os efeitos... Nunca vi ninguém dar a cara, mas que se sentia, sentia. E nós entendemos acabar com aquela tensão.
– O que pensa sobre o eventual fim do DCIAP?
– O DCIAP tem hoje um manancial de informação e uma experiência de tratamento de processos que se fosse dissolvido teríamos de recomeçar de novo. Não podemos passar a vida a recomeçar de novo. O DCIAP é relativamente recente e só há pouco tempo passou a ter um número mínimo de magistrados e de peritos para poder trabalhar. E esse número mínimo foi curiosamente dado por este ministro. Este tipo de experiências não pode acabar antes de começar, senão não chegamos a lado nenhum.
– Em relação à formação dos magistrados. Deve continuar a passar pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ)?
– Creio que não há nenhum modelo mais aperfeiçoado. Admito, porém, que os Conselhos Superiores, assim como as próprias associações sindicais, tenham uma palavra a dizer e colaborem activamente nessa formação. O CEJ deve ser fundamental como escola de formação de uma cultura judiciária comum, que tanto sirva a magistrados como a advogados e juízes e até a notários e conservadores. Mas tem de ser já um pouco mais do que isso. Tem de dar uma visão da vida real porque não podemos continuar a ter magistrados que apenas vêem a realidade através da folha de papel A4. Era importante que os magistrados pudessem ter, de alguma forma, embora já sob a égide e orientação do CEJ, um contacto com o mundo das Finanças, com o mundo sindical, com a Segurança Social... Não é possível aprender à custa dos processos e dos cidadãos.
– Isso é um modelo para contornar a proposta do ministro de abrir a magistratura a outros profissionais?
– A mim não faz nenhuma espécie que venham pessoas de fora. O problema que se pode colocar é: que tipo de pessoas é que vêm? Com o actual quadro de vencimentos da magistratura, nenhum bom jurista que esteja no sector privado quererá vir para a magistratura. Qualquer estagiário que entre para um escritório de advogados – e são recrutados já no 5.º ano nas faculdades mais importantes – vai ganhar mais do que a bolsa que é distribuída no CEJ. O risco que temos aí é de virmos a importar para a magistratura aqueles que o sector privado rejeita porque não tiveram sucesso. Positiva é a possibilidade de para a magistratura virem pessoas com outras experiências, mas virem porque efectivamente querem vir, mas para isso é preciso criar uma carreira apetecível.
– E em relação à distinção na formação para MP e juízes?
– Numa primeira fase acho que não tem sentido. Um juiz de instrução tem de saber tanto de investigação como um magistrado do MP, assim como um procurador tem de saber dar uma sentença para aprender a recorrer dela.
– Não há reformas a mais?
– Quando defendo uma alteração nestes campos não defendo revoluções. Defendo a introdução gradual e sistemática de factores de correcção. Não é necessário pintar o CEJ de uma cor nova para fazer uma reforma da formação. Nas críticas que têm sido feitas ao sistema há muito de conservadorismo, muito de ouvir dizer e muito pouco de serenidade e racionalidade crítica.
– Mas as próprias magistraturas também continuam muito fechadas.
– É verdade que a Justiça é, por um lado, acusada de ser fechada e, por outro, de ser demasiado aberta.
– Os operadores judiciários não são ouvidos pelo legislador?
– Os operadores judiciários, por vezes, também não têm as soluções todas, eles têm é de ser chamados a discutir abertamente as questões. Há coisas para as quais não há soluções fáceis. As opções serão sempre políticas. Quando hoje se fala muito em reformas, é preciso saber que as reformas não são neutras. As reformas têm sentidos. Posso fazer uma reforma para pôr o sistema de Justiça a funcionar muito bem: basta restringir todas as possibilidades de recurso, restringir o número de processos-crime. Agora, politicamente, temos de perguntar: é isto que se espera de um regime democrático?
– Qual é o sentido das reformas que estão em curso?
– Temo que alguns sentidos destas reformas se tenham deixado imbuir demasiado de um espírito economicista e não de um espírito de cidadania. Se é verdade que uma justiça efectiva tem de ser eficaz, também é verdade que podemos ter uma justiça muito eficaz que não seja efectiva para a maioria dos cidadãos.
– Está ultrapassada a crise com o ministro da Justiça (MJ)?
– Pessoalmente tenho até grande estima pelo senhor MJ e admiração intelectual por ele. Não há problemas pessoais aqui. Isto não impede que, sobre muitos aspectos, discorde seriamente de um número significativo de opções que o Governo nesta área tem tomado.
"O PRESIDENTE DA REPÚBLICA ESTABILIZOU O SISTEMA"
CM – O Presidente da República (PR), Cavaco Silva, deu sinais positivos para a Justiça?
António Cluny – O senhor PR (e depois o pacto que nasceu sob a sua égide) teve, pelo menos, a vantagem de estabilizar o sistema, que estava muito crispado.
– Foi também nomeado um novo PGR. Notou uma diferença de estilo?
– Já trabalhei com o conselheiro Arala Chaves, com o dr. Cunha Rodrigues, o dr. Souto Moura e agora o dr. Pinto Monteiro... Cada pessoa tem o seu estilo, naturalmente...
– Souto Moura foi injustiçado?
– Penso que o dr. Souto Moura foi injustiçado relativamente a questões muito concretas. Foi atacado sistematicamente por causa de um processo e não por causa de uma avaliação geral da sua actuação. E quem o atacou daquela forma despropositada fê-lo não especificamente para atacar só o dr. Souto Moura, mas para tentar intimidar o MP.
"MEDIDAS VÃO ATRASAR AS INVESTIGAÇÕES"
CM – O Sindicato manifestou algumas reservas em relação a muitas das propostas deste Governo..
António Cluny – No âmbito da formação, penso que o nosso sentimento está em sintonia com algumas das ideias já avançadas. No âmbito do Processo Penal, embora reconheça que muitas daquelas medidas são importantes do ponto de vista do reforço das garantias dos cidadãos, também é bom que os cidadãos comecem a aperceber-se de que elas não vão traduzir-se num aumento da celeridade ou da eficácia processual. Pode acontecer que venham a atrasar o desenvolvimento das investigações se não forem criados outros mecanismos capazes de, em contrapartida, dotar o sistema de mais meios para dar resposta a estas novas exigências. Por exemplo, não basta dizer que no fim do prazo do inquérito deixa de haver segredo de justiça. Nos processos mais complexos, grande parte dos atrasos deriva da incapacidade que existe por parte dos meios de perícia financeira para dar uma resposta em tempo. Se nós vamos abrir automaticamente o segredo de justiça quando essas perícias ainda estão a decorrer, obviamente estamos a tornar inválido todo este processo. Se estas medidas não forem acompanhadas de um reforço enorme de meios, irão inviabilizar, disso estou relativamente certo, investigações na área da corrupção e criminalidade financeira.
– Concorda com a opinião do PGR sobre o segredo de justiça (“Será sempre violado”)?
– O senhor PGR disse aquilo que é do senso comum, não sei porque é que escandaliza tanta gente. Normalmente a lei quando pune um comportamento é porque ele existe. Enquanto houver automóveis sempre haverá excesso de velocidade. Comentar isto, dando a estas afirmações interpretações absolutamente mirabolantes, parece-me próprio de uma forma menor de discutir e analisar a vida e a política. Os comentários que ouvi são menores, sem nenhum significado.
"MP TEM DE SER MAIS PRÓ-ACTIVO"
CM – O congresso da próxima semana vai debater o futuro do MP. Que caminho deve seguir?
António Cluny – Temos de entender o MP como defensor colectivo dos direitos colectivos e individuais. Temos de encontrar mecanismos de aproximação aos cidadãos, saber quais são as suas grandes preocupações e anseios, uma vez que não podemos responder a todas as preocupações. E temos, por outro lado, de ir explicando porque é que funcionamos assim e com que instrumentos. Só isto pode relegitimar em termos sociais a intervenção do MP e da Justiça em geral. O MP tem de ser um instrumento de afirmação colectiva dos direitos individuais e colectivos de uma forma muito mais pró-activa do que tem sido. Até hoje, deixou-se acantonar numa defesa estritamente formal de alguns direitos, mas não procurou nunca ir ao encontro dos problemas. É fundamental que vá.
– Que projecto para o MP?
– O projecto para o MP tem de passar por esta ligação muito próxima com os cidadãos. Isto significaria que as procuradorias de círculo têm de ser verdadeiros instrumentos de ligação aos cidadãos da respectiva área, que a hierarquia do MP tem de passar a ser pró-activa e não de gestão de estatísticas e de informação burocrática. Tem de saber coordenar, aconselhar, apoiar os magistrados nos processos mais complexos. Tem de haver um caminho que passe pela coordenação, transmissão da experiência... Sob pena de o MP se reduzir a um eco da função policial.
Correio da Manhã.

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