No dia 19 de janeiro, um estilista paulista de certo renome saía do cemitério do Araçá, no centro de São Paulo, com dois vasos de mármore alheios, supostamente com a intenção de acrescentá-los ao seu próprio patrimônio. Surpreendido por funcionários do cemitério que chamaram a polícia, ele foi levado à delegacia, autuado em flagrante e metido preso.Treze dias depois, o promotor Leonardo Leonel Romanelli, do Ministério Público de São Paulo, apresentou denúncia ao juiz da 30ª Vara Criminal da Capital que deverá decidir se a aceita ou não.Enquadrado no artigo 155 do Código Penal por “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, o subtraidor de vasos está sujeito a pena de um a quatro anos de prisão e multa.Em raras oportunidades, como nessa, é possível ver as instituições de repressão ao crime e de garantia da ordem agir com tanta presteza. A pergunta que fica é: e precisava de tudo isso, por um crime apenas insignificante? Num país onde a impunidade é a regra e onde o Judiciário não dá conta de julgar os processos em tempo razoável, faz sentido gastar tempo e recursos para tratar de bagatelas?A decisão está nas mãos do juiz. Com a simples apresentação da denúncia, ele terá de cumprir o ritual de pedir a folha de antecedentes do acusado e, se receber a denúncia, irá proceder a instrução criminal, no qual acusação e defesa apresentarão suas provas e razões até a sentença.O juiz pode também aplicar ao caso o princípio da bagatela, cada vez mais usado pelo Judiciário brasileiro, mesmo não estando previsto em lei. Cresce o entendimento de que o furto, consumado ou não, de objetos de pequeno valor não merece atenção do Direito Penal.Loucas por xampu
O princípio da insignificância teve, pela primeira vez, seu acolhimento expresso pelo Supremo Tribunal Federal em julho de 1988. No caso, o STF arquivou Ação Penal com o fundamento de que um ferimento de três centímetros de diâmetro, causado por um acidente de trânsito, escapa do interesse punitivo do Estado, por causa do princípio da insignificância. Segundo a Corte, o prosseguimento da ação não traria nenhum resultado. Só sobrecarregaria mais os serviços da Justiça e incomodaria inutilmente a vítima.Ronaldo Ésper — este o nome do estilista que subtraiu os vasos — vem fazer companhia a um número não insignificante de anônimos que chegaram a ser punidos de fato pela falta de atenção do aparelho de repressão do Estado. É o caso da Angélica Aparecida Souza Teodoro, condenada a quatro anos de prisão por tentativa de roubo de um pote de manteiga. Antes de ser julgada, ficou 4 meses presa.O banco de dados da ConJur registra pelo menos quatro casos de pessoas que roubaram frascos de xampu em supermercados e foram parar atrás das grades no ano passado. Tão estranha quanto a obsessão destas pessoas em subtrair o xampu alheio é a obsessão do Estado em punir crimes sem conseqüências. Num dos casos, o processo pelo furto de dois frascos de xampu no valor total de R$ 24 só foi solucionado no Superior Tribunal de Justiça. Absolvida, a acusada voltou para casa depois de um ano na prisão.Pode sair mais caro
No caso de Ronaldo Ésper, a pergunta que fica é: cabe Ação Penal para quem tenta furtar dois vasos de pequeno valor? Para o advogado criminalista Luís Guilherme Vieira, não. O caso, segundo ele, sequer merece atenção da Justiça. “Trata-se de algo que gastará tanto tempo e dinheiro do Estado, que qualquer punição não compensará”, afirma.A posição defendida pelo advogado é de que o Ministério Público poderia ter aplicado a bagatela, antes mesmo de oferecer a denúncia. “Só não aceita essa posição quem é realmente muito legalista.”De acordo com o advogado, “se o réu é primário e o objeto do furto for de pequeno valor — entende-se nesse caso até um salário mínimo — pode ser aplicada multa ao acusado, mas não pena de prisão. O processo poderá custar mais de R$ 1,8 mil só na fase de instrução. Valor nitidamente maior do que o dos vasos furtados pelo estilista”.O promotor de Justiça Roberto Livianu defende a mesma tese. “É claro que tudo depende da interpretação do promotor. Existe uma variedade muito grande de pontos de vista. E não se trata só disso. Se há qualquer dúvida, é obrigação do MP oferecer denúncia. Levando em consideração que a dúvida sempre beneficia o réu, há grandes chances de o acusado ser absolvido”, ressalta.O advogado Jair Jaloreto Júnior, também criminalista, diz que “não há irregularidade no oferecimento da denúncia”. Ele nem considera aplicável o princípio da bagatela. De acordo com Jaloreto, o preço dos vasos não é irrelevante.Marcelo Furman, advogado responsável pela defesa do estilista, já prepara a tese que vai defender na Justiça. O argumento é de que não houve furto, nem tentativa. “Não se furta o que está abandonado”, afirma.Muito por pouco
A jurisprudência do STF e do STJ caminha do sentido de que não há crime quando o furto não causa danos ao patrimônio da vítima. Há quase três anos, o ministro Celso de Mello, do Supremo, concedeu liminar em Habeas Corpus para determinar a suspensão da condenação de oito meses de reclusão imposta a um rapaz que furtou uma fita de vídeo-game avaliada em R$ 25.Celso de Mello começou a fundamentar sua decisão com uma pergunta: “Revela-se aplicável, ou não, o princípio da insignificância, quando se tratar de delito de furto que teve por objeto bem avaliado em apenas R$ 25?” Para, ao final, decidir que a condenação do rapaz é ausente de justa causa.Na ocasião, o ministro ressaltou que o STF, quando se trata de crime que envolve tráfico de entorpecentes, “tem assinalado que a pequena quantidade de substância tóxica apreendida em poder do agente não afeta nem exclui o relevo jurídico-penal do comportamento transgressor do ordenamento jurídico, por entender inaplicável, em tais casos, o princípio da insignificância”.E concluiu que, como o caso em exame não se enquadra nessa hipótese e se resume “a simples delito de furto de um bem cujo valor é inferior a 10% do vigente salário mínimo”, deve-se aplicar o também conhecido como princípio da bagatela.Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2007
O princípio da insignificância teve, pela primeira vez, seu acolhimento expresso pelo Supremo Tribunal Federal em julho de 1988. No caso, o STF arquivou Ação Penal com o fundamento de que um ferimento de três centímetros de diâmetro, causado por um acidente de trânsito, escapa do interesse punitivo do Estado, por causa do princípio da insignificância. Segundo a Corte, o prosseguimento da ação não traria nenhum resultado. Só sobrecarregaria mais os serviços da Justiça e incomodaria inutilmente a vítima.Ronaldo Ésper — este o nome do estilista que subtraiu os vasos — vem fazer companhia a um número não insignificante de anônimos que chegaram a ser punidos de fato pela falta de atenção do aparelho de repressão do Estado. É o caso da Angélica Aparecida Souza Teodoro, condenada a quatro anos de prisão por tentativa de roubo de um pote de manteiga. Antes de ser julgada, ficou 4 meses presa.O banco de dados da ConJur registra pelo menos quatro casos de pessoas que roubaram frascos de xampu em supermercados e foram parar atrás das grades no ano passado. Tão estranha quanto a obsessão destas pessoas em subtrair o xampu alheio é a obsessão do Estado em punir crimes sem conseqüências. Num dos casos, o processo pelo furto de dois frascos de xampu no valor total de R$ 24 só foi solucionado no Superior Tribunal de Justiça. Absolvida, a acusada voltou para casa depois de um ano na prisão.Pode sair mais caro
No caso de Ronaldo Ésper, a pergunta que fica é: cabe Ação Penal para quem tenta furtar dois vasos de pequeno valor? Para o advogado criminalista Luís Guilherme Vieira, não. O caso, segundo ele, sequer merece atenção da Justiça. “Trata-se de algo que gastará tanto tempo e dinheiro do Estado, que qualquer punição não compensará”, afirma.A posição defendida pelo advogado é de que o Ministério Público poderia ter aplicado a bagatela, antes mesmo de oferecer a denúncia. “Só não aceita essa posição quem é realmente muito legalista.”De acordo com o advogado, “se o réu é primário e o objeto do furto for de pequeno valor — entende-se nesse caso até um salário mínimo — pode ser aplicada multa ao acusado, mas não pena de prisão. O processo poderá custar mais de R$ 1,8 mil só na fase de instrução. Valor nitidamente maior do que o dos vasos furtados pelo estilista”.O promotor de Justiça Roberto Livianu defende a mesma tese. “É claro que tudo depende da interpretação do promotor. Existe uma variedade muito grande de pontos de vista. E não se trata só disso. Se há qualquer dúvida, é obrigação do MP oferecer denúncia. Levando em consideração que a dúvida sempre beneficia o réu, há grandes chances de o acusado ser absolvido”, ressalta.O advogado Jair Jaloreto Júnior, também criminalista, diz que “não há irregularidade no oferecimento da denúncia”. Ele nem considera aplicável o princípio da bagatela. De acordo com Jaloreto, o preço dos vasos não é irrelevante.Marcelo Furman, advogado responsável pela defesa do estilista, já prepara a tese que vai defender na Justiça. O argumento é de que não houve furto, nem tentativa. “Não se furta o que está abandonado”, afirma.Muito por pouco
A jurisprudência do STF e do STJ caminha do sentido de que não há crime quando o furto não causa danos ao patrimônio da vítima. Há quase três anos, o ministro Celso de Mello, do Supremo, concedeu liminar em Habeas Corpus para determinar a suspensão da condenação de oito meses de reclusão imposta a um rapaz que furtou uma fita de vídeo-game avaliada em R$ 25.Celso de Mello começou a fundamentar sua decisão com uma pergunta: “Revela-se aplicável, ou não, o princípio da insignificância, quando se tratar de delito de furto que teve por objeto bem avaliado em apenas R$ 25?” Para, ao final, decidir que a condenação do rapaz é ausente de justa causa.Na ocasião, o ministro ressaltou que o STF, quando se trata de crime que envolve tráfico de entorpecentes, “tem assinalado que a pequena quantidade de substância tóxica apreendida em poder do agente não afeta nem exclui o relevo jurídico-penal do comportamento transgressor do ordenamento jurídico, por entender inaplicável, em tais casos, o princípio da insignificância”.E concluiu que, como o caso em exame não se enquadra nessa hipótese e se resume “a simples delito de furto de um bem cujo valor é inferior a 10% do vigente salário mínimo”, deve-se aplicar o também conhecido como princípio da bagatela.Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2007
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