sábado, fevereiro 03, 2007

O imaginário popular ainda vê o juiz como aquele senhor de cabelos grisalhos, de classe social abastada, enclausurado em seu gabinete, extremamente sério, que não se envolve nas questões da sociedade a não ser quando provocado em razão de sua profissão, não exprime sua opinião sobre as coisas do cotidiano, só fala nos autos, não dá entrevistas, não contesta as orientações superiores, aplica a lei na certeza de que ela é justa e correta, busca na solidão a pretendida imparcialidade para julgar as causas que lhe são diariamente submetidas.
O juiz da atualidade, todavia, guarda pouca semelhança com o estereótipo acima retratado. A magistratura está passando por um processo de revolução interna, que se reflete nas características pessoais de seus integrantes. Os juízes, antes advindos da classe dominante, hoje são coletados em sua absoluta maioria, com poucas exceções, da classe média. Em geral, o juiz é aquele que teve que trabalhar para arcar com os seus estudos, ralando o umbigo no balcão ou mesas de escritórios, fábricas ou repartições, buscando e construindo o seu próprio futuro profissional.
Os juízes, em especial os de primeira instância, que atuam nos fóruns em contato direto com a população nas salas de audiência, em sua maior parte, são jovens na faixa dos 25/35 anos, dedicados à profissão e às coisas da vida pública, que acreditam no Direito enquanto fonte daquilo que é mais sublime: a Justiça.
Boa parcela desses juízes são mulheres, que contribuem com a magistratura ao apresentar na abordagem do Direito a sua nova visão de mundo.
Na Justiça do Trabalho de São Paulo, por exemplo, cerca de 60% dos cargos de juiz são ocupados por brilhantes e competentes magistradas. Também na segunda instância em todo o país houve uma importante renovação de quadros, que permite a ascensão de nova mentalidade aos tribunais, permitindo uma salutar miscigenação entre a experiência e a juventude, possibilitando que a riqueza desta combinação se reflita em decisões mais justas, em interpretação mais viva dos dispositivos legais, sem arroubos ou imobilismos.
O juiz contemporâneo navega pela internet, lê jornais, assiste televisão, vai às baladas, torce por seu time de futebol, tem a sua preferência política e ideológica, se diverte, passeia com seus filhos, vai à academia, discute religião, estuda, paga plano de saúde, é vaidoso, faz supermercado.
Este magistrado da atualidade, portanto, bem conhece os problemas enfrentados pela sociedade brasileira, até porque também dela integrante. O juiz igualmente sofre e se indigna com o preço do colégio, as filas nos bancos e repartições públicas, o descaso na saúde, a violência das ruas, a corrupção, a exagerada cobrança de impostos, as drogas que viciam nossa juventude, os juros altos, o desrespeito ao ser humano, o desemprego, a falta de ética na política e, inclusive, com a morosidade do Judiciário.
Não há nada mais frustrante do que se analisar um processo, considerar a inicial e defesa, apreciar suas provas, verificar os dispositivos legais correspondentes, estudar a melhor aplicação do Direito àquele caso concreto, construir uma sentença e, depois, ela não ser efetivamente cumprida. Não é nada agradável para o juiz analisar um processo ajuizado anos antes, com fatos já ultrapassados em sua própria memória. Também não é com felicidade que o juiz encara uma pauta com 13, 20 ou 30 audiências diárias, pois sabe, de pronto, que ficará esgotado e não poderá dar o atendimento que a sociedade dele espera.
Os magistrados também querem uma sociedade melhor, mais justa, na qual eles, seus filhos, pais e amigos possam andar em segurança pelas ruas.
Querem, igualmente, um Poder Judiciário que se fortaleça na justeza e efetividade de suas decisões, com estrutura hábil ao atendimento adequado do cidadão, que atue com transparência, com regras apropriadas aos princípios de democracia e impessoalidade no tratamento das questões administrativas internas, que respeite a sociedade, os recursos públicos e a pessoa humana do jurisdicionado, funcionário, advogado e juiz.
O magistrado de hoje se organiza para o enfrentamento dos problemas que encontra no desempenho de suas atividades, buscando melhor estrutura e recursos para que a Justiça seja efetivada em favor do cidadão, independente de sua condição social. Somente praticando a ética e os princípios de justiça, mesmo nas menores coisas, é que conseguiremos construir uma sociedade pautada em novas bases estruturais.
Visando uma sociedade melhor, os juízes estão querendo dar o exemplo dentro de sua própria casa e, neste sentido, fundamental importância tem tido as associações de magistrados. Contra os altos salários pagos a alguns em prejuízo da imagem do conjunto da magistratura, os próprios juízes trabalharam para a instituição de um teto salarial moralizador no serviço público, com uma remuneração transparente e sem penduricalhos.
A própria Associação dos Magistrados Brasileiros chegou a ingressar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) para — fato inédito — reduzir a remuneração de desembargadores num estado da federação. Para a impessoalidade no trato da coisa pública, era indispensável eliminar a chaga do nepotismo e, para tanto, novamente foram os juízes os principais atores, com a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) denunciando publicamente os casos existentes na Justiça do Trabalho na imprensa e no TCU. Depois, ainda, a mesma entidade solicitou ao CNJ que vedasse tal prática e a AMB ingressou com Ação Direta de Constitucionalidade no STF para manter a decisão que ordenava a dispensa de todos os parentes contratados irregularmente.
As associações de magistrados, portanto, estão muito atuantes e conectadas com o sentimento da sociedade que, em outras palavras, é o mesmo dos milhares de magistrados espalhados por este país. O juiz hoje já não mais fica isolado em seu gabinete e vai às escolas, discute em universidades, participa de debates na televisão, percorre o Congresso Nacional, dá entrevistas, organiza trabalho assistencial e de conscientização popular, apresenta propostas legislativas, propõe projetos visando a valorização da dignidade da pessoa humana, contesta medidas administrativas das cúpulas dos tribunais, denuncia arbitrariedades, reivindica melhores condições de trabalho e busca, enfim, com responsabilidade, uma nova postura diante da sociedade da qual faz parte.
Não há e nem deve haver ser humano inerte diante da sociedade que o cerca. O juiz, como pessoa que é, também tem seus medos, fraquezas, desejos, virtudes, defeitos, sonhos e, acima de tudo, um espírito que busca, com a ajuda do Direito, edificar um mundo melhor, mais justo, mais fraterno, onde o homem possa se realizar e ser feliz em sua plenitude.
As associações regionais de magistrados, em especial da Justiça do Trabalho, ciente de suas responsabilidades, também tem dado sua contribuição para que esta nova sociedade, mais igualitária, possa um dia ser concretizada.
Apoiamos a luta pela instituição do teto salarial moralizador, amparamos o combate ao nepotismo, participamos de ato público contra a impunidade e pela ética na política, nos posicionamos contra as medidas que visavam eliminar históricos e básicos direitos da classe trabalhadora, cobramos apuração de denúncias no âmbito do Judiciário, pedimos e apresentamos propostas de instituição de critérios objetivos nas promoções e nas designações de juízes, tentamos incluir na reforma do Judiciário a necessária eleição direta para os cargos diretivos dos tribunais (ao juiz é negado o direito de voto na escolha de seus administradores, circunstância permitida a todos os cidadãos brasileiros), denunciamos a vergonha do trabalho escravo e infantil, divulgamos posicionamentos contra a precarização do trabalho (em especial pela pretendida flexibilização total dos direitos trabalhistas e da terceirização fraudulenta do mercado de trabalho), fizemos debates e apresentamos propostas legislativas, discutimos publicamente nossos problemas, solicitamos medidas processuais que diminuam o formalismo exagerado nos processos, fizemos gestões perante o Congresso Nacional, entre outros.
Nossa maior angústia, não obstante todo o esforço pessoal dos juízes, todavia, reside em não poder dar o atendimento de modo rápido e com a atenção que o cidadão exige e que lhe é de direito, em razão do enorme volume de trabalho, totalmente desproporcional às forças e à estrutura disponível, em especial nas grandes metrópoles. Aqui também não só fizemos reclamar. Lutamos, no Congresso Nacional e junto aos órgãos de governo e de tribunais, pela melhoria da estrutura do Judiciário, normalmente renegada a um segundo plano. Pedimos aos tribunais, com insistência, que haja um esforço para que os cargos vagos de magistrados sejam preenchidos o mais rápido possível.
A demora na nomeação ou a ausência de um único cargo de juiz impede que cerca de mil processos sejam analisados a cada ano, evitando que milhares de pessoas tenham do Estado o adequado atendimento, impedindo o cidadão, enfim, de se realizar como ser humano integral e de obter a manifestação oficial sobre seus direitos.
Só com uma melhor estrutura e em especial com instrumentos processuais que permitam uma efetividade da jurisdição é que teremos condição de, ao lado de nossa atuação pró-ativa na sociedade, poder cumprir com aquilo que a coletividade mais espera de nós: dizer o Direito e fazer com que a Justiça seja aplicada de modo efetivo, rápido e com qualidade.
Os juízes pretendem continuar dando sua contribuição qualificada para a melhoria da sociedade brasileira, não apenas no seu ramo de atividade.
Centenas são os magistrados já engajados em atividades beneméritas, ONGs e associações diversas.
Dessa nova postura não abriremos mão, até porque representou uma conquista e significativo avanço e, pela nossa qualificação, humildemente entendemos que muito temos a contribuir com a sociedade brasileira. Continuaremos e ampliaremos nossa atuação neste sentido.
Todavia, o que mais queremos — e por isso lutamos e nos esforçamos a cada novo dia — é poder cumprir com segurança, qualidade e efetividade a nossa principal responsabilidade profissional e que motivou a transformação de nossas vidas: praticar a Justiça.
Morgana de Almeida Richa, juíza do Trabalho, presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 9ª Região e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros.
Revista Consultor Jurídico, 1 de fevereiro de 2007

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