Politização da Justiça e o Poder Judicial
I. Introdução
Assistimos hoje a uma judicialização progressiva da vida pública, colocando o poder judicial bem como o Ministério Público na primeira linha dos assuntos públicos, e em potencial conflito com o poder político de forma muito distinta à que a sociedade portuguesa estava habituada. Evidentemente que a judicialização da vida pública não começou agora: é fruto de uma evolução importante na sociedade portuguesa, para além de não ser uma dinâmica tipicamente ou unicamente portuguesa. A judicialização da vida pública resultou naturalmente de várias alterações importantes, quer do lado da procura (isto é, da sociedade em geral), quer do lado da oferta (isto é, das magistraturas em particular).
Do lado da procura, o crescimento da influência do Estado na sociedade e na economia gerou, naturalmente, mais conflitos, quer entre privados, quer entre os privados e o Estado que, mais tarde ou mais cedo, exigem uma resposta por parte dos tribunais. Temos pois cidadãos mais alerta, mais informados, mais livres para usar os tribunais de forma a limitar os excessos do poder político. Da possibilidade de acções populares a mais contencioso administrativo (veja-se a título de exemplo os múltiplos casos recentes referentes a exames nacionais e admissão à universidade), os tribunais são cada vez mais chamados pela cidadania a tomar decisões com importantes onsequências não só na vida pública, como na capacidade do poder político para executar efectivamente muitas das suas decisões.
Na verdade, uma parte muito significativa da judicialização não é mais que o fenómeno designado de “regulação por litigância” em que o uso dos tribunais pelos cidadãos substitui ou complementa (depende das circunstâncias e dos autores) a regulação económica e social imposta pela Estado. É um sintoma inerente à maturidade das economias de mercado. Chegou agora a Portugal, mas já era conhecido nos Estados Unido desde o pós-guerra.
A má e altamente instável produção legislativa que se vive em Portugal (que está longe de estar resolvida dadas as sérias limitações do Programa Legislar Melhor) adensou mais a “regulação por litigância”. É que a falta de qualidade e estabilidade no processo legislativo consubstancia uma regulação medíocre pelo Estado. Ora uma regulação medíocre pelos poderes públicos translada para os privados a própria função reguladora que pode ser exercida através dos tribunais.
Mas nem só o desenvolvimento da economia de mercado reforça naturalmente o papel e a influência dos tribunais na vida pública. Também os fenómenos da corrupção, bem como de outros crimes que afectam figuras públicas, acabam por contribuir de forma decisiva. O exemplo italiano é talvez aquele que mais chama a atenção. Quer o Ministério Público, quer os tribunais terão de se habituar a perceber as inevitáveis implicações políticas das suas decisões na vida político-partidária; no caso português, provavelmente longe do cataclismo que geraram no sistema partidário italiano.
Do lado da oferta, temos que entender a mudança de atitude do poder judicial. Observamos que, de forma irreversível, o poder judicial português seguirá o figurino de outros países. Começará por deixar de ser meramente formalista, passará a ser realista, depois interventor e finalmente politizado (não necessariamente partidarizado). Estamos talvez ainda na primeira fase deste processo, muito próximos porventura de entrar na segunda fase. Não se trata de um mero fosso geracional, em que a magistratura mais jovem assimila novos valores próprios da democracia ou da liberdade política. Também não é uma consequência de alterações conscientes na formação dos magistrados no CEJ.
Assistimos hoje a uma judicialização progressiva da vida pública, colocando o poder judicial bem como o Ministério Público na primeira linha dos assuntos públicos, e em potencial conflito com o poder político de forma muito distinta à que a sociedade portuguesa estava habituada. Evidentemente que a judicialização da vida pública não começou agora: é fruto de uma evolução importante na sociedade portuguesa, para além de não ser uma dinâmica tipicamente ou unicamente portuguesa. A judicialização da vida pública resultou naturalmente de várias alterações importantes, quer do lado da procura (isto é, da sociedade em geral), quer do lado da oferta (isto é, das magistraturas em particular).
Do lado da procura, o crescimento da influência do Estado na sociedade e na economia gerou, naturalmente, mais conflitos, quer entre privados, quer entre os privados e o Estado que, mais tarde ou mais cedo, exigem uma resposta por parte dos tribunais. Temos pois cidadãos mais alerta, mais informados, mais livres para usar os tribunais de forma a limitar os excessos do poder político. Da possibilidade de acções populares a mais contencioso administrativo (veja-se a título de exemplo os múltiplos casos recentes referentes a exames nacionais e admissão à universidade), os tribunais são cada vez mais chamados pela cidadania a tomar decisões com importantes onsequências não só na vida pública, como na capacidade do poder político para executar efectivamente muitas das suas decisões.
Na verdade, uma parte muito significativa da judicialização não é mais que o fenómeno designado de “regulação por litigância” em que o uso dos tribunais pelos cidadãos substitui ou complementa (depende das circunstâncias e dos autores) a regulação económica e social imposta pela Estado. É um sintoma inerente à maturidade das economias de mercado. Chegou agora a Portugal, mas já era conhecido nos Estados Unido desde o pós-guerra.
A má e altamente instável produção legislativa que se vive em Portugal (que está longe de estar resolvida dadas as sérias limitações do Programa Legislar Melhor) adensou mais a “regulação por litigância”. É que a falta de qualidade e estabilidade no processo legislativo consubstancia uma regulação medíocre pelo Estado. Ora uma regulação medíocre pelos poderes públicos translada para os privados a própria função reguladora que pode ser exercida através dos tribunais.
Mas nem só o desenvolvimento da economia de mercado reforça naturalmente o papel e a influência dos tribunais na vida pública. Também os fenómenos da corrupção, bem como de outros crimes que afectam figuras públicas, acabam por contribuir de forma decisiva. O exemplo italiano é talvez aquele que mais chama a atenção. Quer o Ministério Público, quer os tribunais terão de se habituar a perceber as inevitáveis implicações políticas das suas decisões na vida político-partidária; no caso português, provavelmente longe do cataclismo que geraram no sistema partidário italiano.
Do lado da oferta, temos que entender a mudança de atitude do poder judicial. Observamos que, de forma irreversível, o poder judicial português seguirá o figurino de outros países. Começará por deixar de ser meramente formalista, passará a ser realista, depois interventor e finalmente politizado (não necessariamente partidarizado). Estamos talvez ainda na primeira fase deste processo, muito próximos porventura de entrar na segunda fase. Não se trata de um mero fosso geracional, em que a magistratura mais jovem assimila novos valores próprios da democracia ou da liberdade política. Também não é uma consequência de alterações conscientes na formação dos magistrados no CEJ.
Na minha perspectiva, o formalismo serviu durante muitos anos (digamos mesmo, nos últimos cem anos) para proteger o poder judicial dos ciclos políticos, de responsabilidade moral sobre o conteúdo das leis e sua respectiva aplicação, e dos ajustes de contas entre os variados grupos corporativos que compõem ou vivem do Estado português (político, militar, religioso, universitário, etc.). A capacidade de sobrevivência do poder judicial ao longo do século XX, sem grandes sobressaltos, faz inveja às outras corporações. Porém, vivemos um ciclo longo de estabilidade política e institucional que permite ao poder judicial ir abandonando pouco a pouco o seu cinto formalista. Junta-se a isto a exposição mediática do poder judicial. Vêem-se obrigados a explicar as suas decisões, são confrontados com a realidade das consequências das suas decisões, são responsabilizados na sociedade pela situação caótica da Justiça.
A alegada excessiva exposição mediática da Justiça acaba por contribuir de forma decisiva para acordar o poder judicial dessa longa letargia que o protegeu e imunizou durante tantos anos.
O que precisamente diferencia os magistrados de outras profissões é o valor que este grupo dá à sua reputação social (isto é, a reputação do colectivo em detrimento da reputação individual). A estratégia política (consciente ou inconsciente) de culpabilizar o poder judicial pela situação caótica da Justiça (quando o nosso poder judicial nunca gozou de independência administrativa e processual) bem como de levar para os tribunais conflitos essencialmente políticos só pode aumentar a exposição mediática das magistraturas, e logo compelir o poder judicial a abandonar o cinto formalista.
Um novo tempo de judicialização da vida pública augura confrontos directos e severos entre o poder executivo e o poder judicial. Não sei se terão lugar amanhã, se dentro de três ou quatro anos, mas parece-me que esses confrontos vão ser uma parte importante do caminho que estamos lentamente a percorrer. A maior preocupação que tenho é, contudo, com aquilo que me parece ser a preparação muito limitada que o sistema político português tem para estas novidades.
Primeiro, porque não se fizeram as reformas das magistraturas, não se discutiu e repensou a governança quer do poder judicial (CSM), quer do Ministério Público. Essencialmente, mantém-se uma organização e gestão judiciárias deficientemente pensadas. A judicialização progressiva da vida pública veio extinguir o espaço de consensos possíveis para as reformas das magistraturas que se pediam. Diria mesmo que, neste momento, esse espaço de consensos possíveis já se esgotou. Qualquer reforma profunda neste momento, sendo necessária, dificilmente poderá ser consensual.
Em segundo lugar, as tentações políticas que a judicialização introduz. O custo da judicialização da vida pública é, antes de tudo, a politização das magistraturas, o que é um bem em si mesmo se isso corresponder ao abandono do formalismo doutrinário pelo realismo judiciário. Mas da politização à partidarização vai um passo. E aí o sistema político português dá-nos razões para preocupação. Num sistema político em que o legislativo se secundarizou frente ao executivo, uma judicialização progressiva irá provocar tensões inevitáveis entre os magistrados e o governo. Uma resposta habitual a estas tensões é a limitação da independência do poder judicial. Começa por exercer-se a suposta falta de legitimidade democrática do poder judicial. Continua na desresponsabilização do legislador frente ao magistrado. E, finalmente, em intromissões directas na esfera judicial. Veremos a seu tempo se o poder político português saberá evitar cair em semelhantes tentações.
A alegada excessiva exposição mediática da Justiça acaba por contribuir de forma decisiva para acordar o poder judicial dessa longa letargia que o protegeu e imunizou durante tantos anos.
O que precisamente diferencia os magistrados de outras profissões é o valor que este grupo dá à sua reputação social (isto é, a reputação do colectivo em detrimento da reputação individual). A estratégia política (consciente ou inconsciente) de culpabilizar o poder judicial pela situação caótica da Justiça (quando o nosso poder judicial nunca gozou de independência administrativa e processual) bem como de levar para os tribunais conflitos essencialmente políticos só pode aumentar a exposição mediática das magistraturas, e logo compelir o poder judicial a abandonar o cinto formalista.
Um novo tempo de judicialização da vida pública augura confrontos directos e severos entre o poder executivo e o poder judicial. Não sei se terão lugar amanhã, se dentro de três ou quatro anos, mas parece-me que esses confrontos vão ser uma parte importante do caminho que estamos lentamente a percorrer. A maior preocupação que tenho é, contudo, com aquilo que me parece ser a preparação muito limitada que o sistema político português tem para estas novidades.
Primeiro, porque não se fizeram as reformas das magistraturas, não se discutiu e repensou a governança quer do poder judicial (CSM), quer do Ministério Público. Essencialmente, mantém-se uma organização e gestão judiciárias deficientemente pensadas. A judicialização progressiva da vida pública veio extinguir o espaço de consensos possíveis para as reformas das magistraturas que se pediam. Diria mesmo que, neste momento, esse espaço de consensos possíveis já se esgotou. Qualquer reforma profunda neste momento, sendo necessária, dificilmente poderá ser consensual.
Em segundo lugar, as tentações políticas que a judicialização introduz. O custo da judicialização da vida pública é, antes de tudo, a politização das magistraturas, o que é um bem em si mesmo se isso corresponder ao abandono do formalismo doutrinário pelo realismo judiciário. Mas da politização à partidarização vai um passo. E aí o sistema político português dá-nos razões para preocupação. Num sistema político em que o legislativo se secundarizou frente ao executivo, uma judicialização progressiva irá provocar tensões inevitáveis entre os magistrados e o governo. Uma resposta habitual a estas tensões é a limitação da independência do poder judicial. Começa por exercer-se a suposta falta de legitimidade democrática do poder judicial. Continua na desresponsabilização do legislador frente ao magistrado. E, finalmente, em intromissões directas na esfera judicial. Veremos a seu tempo se o poder político português saberá evitar cair em semelhantes tentações.
II. Governança do Poder Judicial
É neste contexto de progressiva judicialização da vida política e politização do poder judicial que importa reflectir sobre a governança do poder judicial. De um modo geral, os órgãos de governança da magistratura judicial tentam chegar a um equilíbrio entre independência judicial e accountability, mas apresentam diferenças significativas em várias dimensões, tais como o nível das competências, a composição, o processo de nomeação, ou o orçamento e autonomia financeira e administrativa. No entanto, não existe um “modelo-óptimo” que permita obter sempre e de forma eficiente aquilo que se procura em democracia, ou seja, um equilíbrio entre um poder judicial independente mas responsável e responsabilizado, situação agravada pelo facto de estas duas orças andarem em sentidos opostos. Por exemplo, Garoupa e Ginsburg (2007) utilizam dados empíricos de vários países para estudar a relação entre
qualidade do poder judicial e conselhos da judicatura, concluindo pela fraca relação entre eles. De acordo com os autores, as reformas verificadas em vários países reflectem a tensão inevitável entre uma necessidade de despartidarizar a judicatura e a tendência crescente de judicialização política.
A qualidade judicial apenas poderá ser alcançada através de uma judicatura independente. É comum encontrarmos casos de países que fazem tentativas para acabar com a politização do poder judicial através de reformas importantes na judicatura que limitem a influência dos outros poderes, legislativo e executivo (geralmente posteriores a regimes autoritários) bem como instituir garantias constitucionais que oferecem legitimidade democrática (que não eleitoral) ao poder judicial (como já oportunamente foi dito não é fora do comum que tentativas de politização da judicatura comecem precisamente pela objecção ao poder judicial por falta de legitimidade eleitoral quando comparados com outros órgãos de soberania).
Contudo, a atribuição de mais poderes e independência à magistratura judicial pode e leva em muitos casos ao problema oposto, ou seja, a falta de accountability agravada pela judicialização do poder político. Esta judicialização do poder político e das políticas públicas não resulta apenas das competências alargadas da judicatura, que chamam a si cada vez mais funções importantes do processo democrático de políticas públicas, mas como já vimos de uma maior exigência da cidadania que recorre ao poder judicial como árbitro dos seus conflitos com a administração (veja-se o mundo anglo-saxónico) bem como em resultado dos fenómenos de corrupção e captura política (como foi certamente o caso italiano). Está claro que a influência do poder judicial nas políticas públicas leva a maiores pressões para mais accountability ou controle externo, ou em alternativa, fenómenos de dejudicialização de conflitos que efectivamente estendem competências da administração à custa do poder judicial. As vastíssimas implicações económicas e sociais da actividade e tomada de decisões dos magistrados acarretam que estes estejam também mais vulneráveis a eventuais interferências de outros poderes. E a este nível, há vários tipos de pressões a ter em conta, não só a do poder político ou lobbies, que actuam como pressões externas, mas também pressões vindas de níveis hierárquicos superiores da judicatura, sendo estas pressões essencialmente internas.
Fundamentalmente não existe uma fórmula certa para a questão da organização do poder judicial. Contudo, qualquer reforma da governança do poder judicial deve simultaneamente reforçar a sua independência e implementar responsabilidade e responsabilização, gerindo a tensão inevitável entre estes dois objectivos. Por isso mesmo as questões substantivas devem sobrepor-se a questões organizativas, importantes, mas não fundamentais. Por exemplo, a existência ou não de um conselho único (deve-se ou não fundir a magistratura judiciária com a magistratura do Ministério Público) só tem sentido num contexto amplo de revisão de competências e composição. Não nos parece que seja muito diferente dois conselhos como no modelo português ou um conselho único mas com duas formações distintas como no modelo francês.
Devemos pois prestar mais atenção aos objectivos de independência e accountability e menos à organização formal (Garoupa e Garcia, 20063).
As tarefas de um conselho da judicatura estão usualmente consagradas no texto constitucional. São elas que determinam a possibilidade de obter um sistema eficaz e eficiente de governança judiciária. De acordo com Garoupa (2006)4 existem duas características importantes quando, olhando os textos
constitucionais, nos referimos à governança da Justiça: a necessidade de preservar a independência da Justiça da interferência de outros poderes que subvertam o cumprimento cabal das suas tarefas e o grau de especialização das actividades relacionadas com a Justiça (que são como vimos um entrave à avaliação e monitorização por agentes externos ao sistema). Uma vez que um sistema independente e especializado implica maiores custos de transacção e de coordenação (os custos de agência na linguagem microeconómica), aumentando também a possibilidade de procura de rendas (isto é, remuneração do poder judicial acima da sua produtividade marginal), a estrutura de governança deverá não só ser compatível com a independência e especialização da Justiça, mas também minimizar a procura de rendas.
Outra questão importante apontada é a da distinção entre a independência das decisões tomadas pelo poder judicial (enquanto característica específica desse poder judicial) e a gestão e administração do sistema (que não esgota qualquer especificidade do poder judicial). Assim, Garoupa (2006) defende que a competência no garante da independência do poder judicial deverá ser sempre acautelada pelos tribunais superiores, especialmente pelo supremo, e não pelo conselho da judicatura. No que concerne à gestão e administração, deveria existir um único conselho da judicatura (para todas as magistraturas judiciais), responsável apenas perante a Assembleia da República (enquanto fonte de legitimidade democrática para uma accountability externa), e todos os seus elementos deveriam ser escolhidos pela mesma por uma razão de coerência estrutural (portanto uma versão mais próxima do sistema espanhol do que do português).
III. Algumas Reflexões Baseadas no Caso Espanhol
É neste contexto de progressiva judicialização da vida política e politização do poder judicial que importa reflectir sobre a governança do poder judicial. De um modo geral, os órgãos de governança da magistratura judicial tentam chegar a um equilíbrio entre independência judicial e accountability, mas apresentam diferenças significativas em várias dimensões, tais como o nível das competências, a composição, o processo de nomeação, ou o orçamento e autonomia financeira e administrativa. No entanto, não existe um “modelo-óptimo” que permita obter sempre e de forma eficiente aquilo que se procura em democracia, ou seja, um equilíbrio entre um poder judicial independente mas responsável e responsabilizado, situação agravada pelo facto de estas duas orças andarem em sentidos opostos. Por exemplo, Garoupa e Ginsburg (2007) utilizam dados empíricos de vários países para estudar a relação entre
qualidade do poder judicial e conselhos da judicatura, concluindo pela fraca relação entre eles. De acordo com os autores, as reformas verificadas em vários países reflectem a tensão inevitável entre uma necessidade de despartidarizar a judicatura e a tendência crescente de judicialização política.
A qualidade judicial apenas poderá ser alcançada através de uma judicatura independente. É comum encontrarmos casos de países que fazem tentativas para acabar com a politização do poder judicial através de reformas importantes na judicatura que limitem a influência dos outros poderes, legislativo e executivo (geralmente posteriores a regimes autoritários) bem como instituir garantias constitucionais que oferecem legitimidade democrática (que não eleitoral) ao poder judicial (como já oportunamente foi dito não é fora do comum que tentativas de politização da judicatura comecem precisamente pela objecção ao poder judicial por falta de legitimidade eleitoral quando comparados com outros órgãos de soberania).
Contudo, a atribuição de mais poderes e independência à magistratura judicial pode e leva em muitos casos ao problema oposto, ou seja, a falta de accountability agravada pela judicialização do poder político. Esta judicialização do poder político e das políticas públicas não resulta apenas das competências alargadas da judicatura, que chamam a si cada vez mais funções importantes do processo democrático de políticas públicas, mas como já vimos de uma maior exigência da cidadania que recorre ao poder judicial como árbitro dos seus conflitos com a administração (veja-se o mundo anglo-saxónico) bem como em resultado dos fenómenos de corrupção e captura política (como foi certamente o caso italiano). Está claro que a influência do poder judicial nas políticas públicas leva a maiores pressões para mais accountability ou controle externo, ou em alternativa, fenómenos de dejudicialização de conflitos que efectivamente estendem competências da administração à custa do poder judicial. As vastíssimas implicações económicas e sociais da actividade e tomada de decisões dos magistrados acarretam que estes estejam também mais vulneráveis a eventuais interferências de outros poderes. E a este nível, há vários tipos de pressões a ter em conta, não só a do poder político ou lobbies, que actuam como pressões externas, mas também pressões vindas de níveis hierárquicos superiores da judicatura, sendo estas pressões essencialmente internas.
Fundamentalmente não existe uma fórmula certa para a questão da organização do poder judicial. Contudo, qualquer reforma da governança do poder judicial deve simultaneamente reforçar a sua independência e implementar responsabilidade e responsabilização, gerindo a tensão inevitável entre estes dois objectivos. Por isso mesmo as questões substantivas devem sobrepor-se a questões organizativas, importantes, mas não fundamentais. Por exemplo, a existência ou não de um conselho único (deve-se ou não fundir a magistratura judiciária com a magistratura do Ministério Público) só tem sentido num contexto amplo de revisão de competências e composição. Não nos parece que seja muito diferente dois conselhos como no modelo português ou um conselho único mas com duas formações distintas como no modelo francês.
Devemos pois prestar mais atenção aos objectivos de independência e accountability e menos à organização formal (Garoupa e Garcia, 20063).
As tarefas de um conselho da judicatura estão usualmente consagradas no texto constitucional. São elas que determinam a possibilidade de obter um sistema eficaz e eficiente de governança judiciária. De acordo com Garoupa (2006)4 existem duas características importantes quando, olhando os textos
constitucionais, nos referimos à governança da Justiça: a necessidade de preservar a independência da Justiça da interferência de outros poderes que subvertam o cumprimento cabal das suas tarefas e o grau de especialização das actividades relacionadas com a Justiça (que são como vimos um entrave à avaliação e monitorização por agentes externos ao sistema). Uma vez que um sistema independente e especializado implica maiores custos de transacção e de coordenação (os custos de agência na linguagem microeconómica), aumentando também a possibilidade de procura de rendas (isto é, remuneração do poder judicial acima da sua produtividade marginal), a estrutura de governança deverá não só ser compatível com a independência e especialização da Justiça, mas também minimizar a procura de rendas.
Outra questão importante apontada é a da distinção entre a independência das decisões tomadas pelo poder judicial (enquanto característica específica desse poder judicial) e a gestão e administração do sistema (que não esgota qualquer especificidade do poder judicial). Assim, Garoupa (2006) defende que a competência no garante da independência do poder judicial deverá ser sempre acautelada pelos tribunais superiores, especialmente pelo supremo, e não pelo conselho da judicatura. No que concerne à gestão e administração, deveria existir um único conselho da judicatura (para todas as magistraturas judiciais), responsável apenas perante a Assembleia da República (enquanto fonte de legitimidade democrática para uma accountability externa), e todos os seus elementos deveriam ser escolhidos pela mesma por uma razão de coerência estrutural (portanto uma versão mais próxima do sistema espanhol do que do português).
III. Algumas Reflexões Baseadas no Caso Espanhol
Uma comparação entre o Conselho Superior da Magistratura (CSM), por um lado, e o Consejo General del Poder Judicial (CGPJ), por outro parece-nos indicar algumas pistas para reflexão. Tanto no caso espanhol como no caso português, o CGPJ e CSM surgem após a queda de regimes autoritários, numa altura em que se tentava procurar uma forma de independência do poder judicial especialmente face ao poder político, própria ou adequada a um regime democrático. Contudo existem diferenças muito importantes que, na minha perspectiva, aproximam o CGPJ de um modelo mais adequado do que o CSM para a progressiva judicialização da vida pública.
(a) Composição
Enquanto o CSM tem uma composição mista de membros eleitos pelos magistrados judiciais e membros escolhidos pelo poder político (Assembleia da República e Presidente da República), os membros do CGPJ são inteiramente eleitos pelo Congresso de Deputados e Senado (com excepção do Presidente do Tribunal Supremo, membro ex officio). Tanto no caso português como no caso espanhol, os seus órgãos de governança da magistratura judicial são efectivamente compostos maioritariamente por magistrados e, dentro destes, os magistrados dos tribunais superiores têm um papel preponderante, mas não dominante. Contudo, a forma de selecção dos membros do CGPJ garante maior accountability em relação aos outros poderes políticos.
Quanto à duração dos mandatos dos vogais dos conselhos judiciários, estes são bastante reduzidos, ainda que no caso português possa haver lugar a reeleição. As mudanças estruturais necessárias na Justiça não apresentam resultados imediatos, e tendo em conta que os mandatos têm uma duração reduzida, é natural que os seus membros possam não estar empenhados em dar o seu contributo mais oneroso. Assim, seria importante pensar num alargamento do número de anos de cada mandato mas onde não houvesse possibilidade de reeleição para evitar excessivas dependências ou fidelidade partidária, como acontece actualmente com o Tribunal Constitucional, por exemplo.
A eleição ou escolha dos vogais através de um sistema de checks and balances entre o Presidente da República, poder legislativo e poder judicial só pode funcionar de forma efectiva com uma dedicação exclusiva desses mesmos vogais. O elevado número de vogais magistrados bem como a particularidade dos vogais não-magistrados não exercerem o seu lugar a tempo inteiro gera tentações corporativas. Evidentemente que a tomada de decisão será tanto melhor em termos qualitativos quanto menos interesses corporativos e directos estiverem envolvidos. Por esse motivo se defende a escolha de toda a composição destes órgãos pela Assembleia da República (como no modelo espanhol) mas com dedicação exclusiva e uma maioria de magistrados.
Obviamente maioria não significa totalidade. Quando constatamos que estes conselhos judiciários devem ser órgãos de administração e de gestão, e não de garantia da independência do poder judicial como já foi comentado, não haverá grande vantagem em ter na sua composição apenas magistrados ou outros juristas. Pensamos assim na inclusão de pessoas com formação noutras áreas, em que gestão, economia, sociologia, psicologia e recursos humanos seriam escolhas óbvias, mas também leigos na verdadeira perspectiva de um exercício de accountability.
Uma vez que introduzimos a dedicação exclusiva e permanência, as incompatibilidades dos vogais do conselho ficam resolvidas. Não podem os vogais do conselho continuar a exercer qualquer profissão liberal, uma vez que coloca problemas à independência do conselho neste momento (só pode ser interpretado com um conflito de interesses muito sério). Esta é uma diferença importante e fundamental quando comparamos o que se passa em Portugal e em Espanha, uma vez que os vogais do CGPJ estão em regime de exclusividade e permanência no exercício das suas funções, o que permite um conhecimento mais profundo das decisões, uma dedicação às suas funções, e uma transparência mais adequada a um conselho judiciário. Na verdade, a participação num conselho judiciário só tem sentido com dedicação exclusiva e, consequentemente, devidamente remunerada. Só assim se podem resolver problemas de selecção adversa, uma vez que veda aos membros dos conselhos judiciários a possibilidade de procurar outro tipo de tarefas que possam reduzir a sua independência.
(b) Orçamento e Recursos
O CSM não tem uma dotação orçamental própria, estando dependente do Ministério da Justiça e do seu orçamento. No entanto, e de acordo com a recente proposta de lei aprovada em Conselho de Ministros (a nova Lei Orgânica do Conselho Superior da Magistratura), está previsto dotar o CSM de autonomia administrativa e financeira. Esta alteração vai implicar um alargamento das competências do CSM, que passará a gerir os seus recursos próprios. Apesar de não se conhecerem os pormenores desta proposta em termos de execução, teria sido importante que a competência orçamental fosse exclusiva da Assembleia da República, podendo ser para consulta do Ministério da Justiça mediante decisão da Assembleia da república. A administração e gestão do orçamento deveriam ser da responsabilidade exclusiva do órgão de governança, sujeito ao controlo de auditoria externa. Resta ainda saber quanto tempo tarda até que estas alterações entrem efectivamente em vigor, uma vez que até em alterações bastante mais simples as demoras são consideráveis. A título de exemplo, desde pelo menos 2005 que o CSM refere no seu Plano de Actividades do CSM a possibilidade de mais um ou dois vogais dos eleitos pela Assembleia da República passarem a regime de tempo integral, o que não aconteceu até hoje.
(c) Competências
Só um orçamento adequado às competências do conselho é aceitável. Na minha perspectiva, algumas dessas competências devem ser alargadas. Ao nível da nomeação de juízes e avaliação de desempenho, não se verificam grandes diferenças formais entre o CSM e o CGPJ, uma vez que têm atribuições em termos de nomeação, colocação, transferência, promoção e regime de disciplina. A diferença substantiva nesta área relaciona-se com a disponibilidade de recursos.
O CGPJ apresenta ainda competências ao nível da selecção e formação dos magistrados judiciais que anteriormente cabiam ao executivo. Assim, a Escuela Judicial foi transferida para o Conselho, configurando-se como um órgão técnico daquele. No caso português, o Centro de Estudos Judiciários é o responsável pela formação profissional de magistrados judiciais, estando sob a dependência do Ministério da Justiça. O CEJ tem uma certa influência no CSM uma vez que do seu corpo docente fazem parte magistrados judiciais destacados em comissões de serviço de três anos renováveis cuja escolha é feita por indicação do CSM. Nesta área parece-me adequado que o CEJ estivesse de forma mais funcional dependente do CSM num modelo semelhante ao CGPJ.
Os conselhos judiciários portugueses podem estudar e propor ao Ministro da Justiça providências legislativas que permitam uma maior eficiência e aperfeiçoamento das instituições judiciárias e jurisdição administrativa e fiscal.
No entanto, tais tarefas só podem ser cabalmente cumpridas com um apoio técnico e um orçamento que não estão disponíveis. O CGPJ exerce funções consultivas, no sentido de informar projectos-lei e disposições gerais do Estado e Comunidades Autónomas que afectem o poder judicial e, apesar de não ter poderes legislativos, pode desenvolver regulamentos que tenham a ver com a governança judicial, nomeadamente ao nível do seu pessoal, organização e funcionamento. Espera-se que o CSM possa desenvolver tarefas semelhantes se para isso forem disponibilizados os recursos necessários.
(d) Politização e Partidarização
A composição e tipo de nomeação dos membros dos órgãos de governança da magistratura judicial propostas poderão criar uma eventual politização e partidarização destes órgãos. Evidentemente que a politização do conselho dependerá das competências que tem (competências mais extensas atraem maior atenção política) e da composição e nomeação. Contudo, a politização não só é inevitável como não é necessariamente negativa. Não pode um conselho da judicatura com extensas competências ser gerido de forma meramente funcional ou tecnocrática. Maiores competências e autonomia orçamental pedem escolhas e opções que têm de basear-se em preferências individuais dos membros do conselho. A politização resulta naturalmente destas preferências. Se a independência substantiva do poder judicial for garantida de forma efectiva pelos tribunais superiores, essa politização terá impacto onde deve ter (na gestão do sistema judiciário) e não onde não deve ter (no exercício das funções que são reserva absoluta do poder judicial). Outra coisa bem distinta é a partidarização do conselho, isto é, sujeitar a agenda da judicatura a opções partidárias que no fundo pretendem limitar a independência do poder judicial. Ainda é cedo para de forma conclusiva afirmar que o CGPJ está partidarizado. É verdade que os dois últimos anos mostraram um conflito latente entre o CGPJ e o Governo, mas muitas decisões do CGPJ foram aprovadas por unanimidade (por exemplo, no contexto da luta contra a organização terrorista ETA). Na verdade, é bem possível que o CGPJ reflicta bem mais uma dinâmica política semelhante ao nosso Tribunal Constitucional onde o alinhamento partidário possa ser bem mais ocasional mas sempre mediático.
IV. Conclusões
Sendo os conselhos judiciários os órgãos de governança da magistratura judicial, a sua estrutura e organização deverão ser feitas de modo a permitir uma maior eficiência e eficácia ao nível da magistratura judicial, sendo natural que algumas alterações tenham que ser consideradas como resposta a mudanças e evoluções noutras áreas. Num momento de progressiva judicialização da vida pública e partidarização do poder judicial, parece-me importante reflectir sobre a composição, competências, orçamento e politização destas instituições.
Apesar do modelo espanhol não ser um “modelo-óptimo” de conselho judiciário e de ter de haver muito cuidado quando se tentam importar e transplantar modelos de outros países, a verdade é que nesta matéria nos parece um modelo bem mais adequado. Estamos cientes do risco inerente à politização e partidarização no modelo espanhol. Contudo, não nos parece um risco mais grave do que aquele que já corremos com a actual configuração do Tribunal Constitucional.
Em contrapartida, a actual solução em que predomina uma autonomia formal sem recursos efectivos (orçamentais e humanos) para que o conselho judiciário possa exercer as suas competências (não me parece que a nova Lei Orgânica do Conselho Superior da Magistratura venha a resolver esta situação apesar do já habitual optimismo dos comentadores) configura na minha perspectiva um risco muito maior. É um modelo totalmente inadequado à judicialização crescente e inevitável, e por isso mesmo mais perigoso que o modelo espanhol.
Por Nuno Garoupa, In http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Professor%20Nuno%20Garoupa.pdf
(a) Composição
Enquanto o CSM tem uma composição mista de membros eleitos pelos magistrados judiciais e membros escolhidos pelo poder político (Assembleia da República e Presidente da República), os membros do CGPJ são inteiramente eleitos pelo Congresso de Deputados e Senado (com excepção do Presidente do Tribunal Supremo, membro ex officio). Tanto no caso português como no caso espanhol, os seus órgãos de governança da magistratura judicial são efectivamente compostos maioritariamente por magistrados e, dentro destes, os magistrados dos tribunais superiores têm um papel preponderante, mas não dominante. Contudo, a forma de selecção dos membros do CGPJ garante maior accountability em relação aos outros poderes políticos.
Quanto à duração dos mandatos dos vogais dos conselhos judiciários, estes são bastante reduzidos, ainda que no caso português possa haver lugar a reeleição. As mudanças estruturais necessárias na Justiça não apresentam resultados imediatos, e tendo em conta que os mandatos têm uma duração reduzida, é natural que os seus membros possam não estar empenhados em dar o seu contributo mais oneroso. Assim, seria importante pensar num alargamento do número de anos de cada mandato mas onde não houvesse possibilidade de reeleição para evitar excessivas dependências ou fidelidade partidária, como acontece actualmente com o Tribunal Constitucional, por exemplo.
A eleição ou escolha dos vogais através de um sistema de checks and balances entre o Presidente da República, poder legislativo e poder judicial só pode funcionar de forma efectiva com uma dedicação exclusiva desses mesmos vogais. O elevado número de vogais magistrados bem como a particularidade dos vogais não-magistrados não exercerem o seu lugar a tempo inteiro gera tentações corporativas. Evidentemente que a tomada de decisão será tanto melhor em termos qualitativos quanto menos interesses corporativos e directos estiverem envolvidos. Por esse motivo se defende a escolha de toda a composição destes órgãos pela Assembleia da República (como no modelo espanhol) mas com dedicação exclusiva e uma maioria de magistrados.
Obviamente maioria não significa totalidade. Quando constatamos que estes conselhos judiciários devem ser órgãos de administração e de gestão, e não de garantia da independência do poder judicial como já foi comentado, não haverá grande vantagem em ter na sua composição apenas magistrados ou outros juristas. Pensamos assim na inclusão de pessoas com formação noutras áreas, em que gestão, economia, sociologia, psicologia e recursos humanos seriam escolhas óbvias, mas também leigos na verdadeira perspectiva de um exercício de accountability.
Uma vez que introduzimos a dedicação exclusiva e permanência, as incompatibilidades dos vogais do conselho ficam resolvidas. Não podem os vogais do conselho continuar a exercer qualquer profissão liberal, uma vez que coloca problemas à independência do conselho neste momento (só pode ser interpretado com um conflito de interesses muito sério). Esta é uma diferença importante e fundamental quando comparamos o que se passa em Portugal e em Espanha, uma vez que os vogais do CGPJ estão em regime de exclusividade e permanência no exercício das suas funções, o que permite um conhecimento mais profundo das decisões, uma dedicação às suas funções, e uma transparência mais adequada a um conselho judiciário. Na verdade, a participação num conselho judiciário só tem sentido com dedicação exclusiva e, consequentemente, devidamente remunerada. Só assim se podem resolver problemas de selecção adversa, uma vez que veda aos membros dos conselhos judiciários a possibilidade de procurar outro tipo de tarefas que possam reduzir a sua independência.
(b) Orçamento e Recursos
O CSM não tem uma dotação orçamental própria, estando dependente do Ministério da Justiça e do seu orçamento. No entanto, e de acordo com a recente proposta de lei aprovada em Conselho de Ministros (a nova Lei Orgânica do Conselho Superior da Magistratura), está previsto dotar o CSM de autonomia administrativa e financeira. Esta alteração vai implicar um alargamento das competências do CSM, que passará a gerir os seus recursos próprios. Apesar de não se conhecerem os pormenores desta proposta em termos de execução, teria sido importante que a competência orçamental fosse exclusiva da Assembleia da República, podendo ser para consulta do Ministério da Justiça mediante decisão da Assembleia da república. A administração e gestão do orçamento deveriam ser da responsabilidade exclusiva do órgão de governança, sujeito ao controlo de auditoria externa. Resta ainda saber quanto tempo tarda até que estas alterações entrem efectivamente em vigor, uma vez que até em alterações bastante mais simples as demoras são consideráveis. A título de exemplo, desde pelo menos 2005 que o CSM refere no seu Plano de Actividades do CSM a possibilidade de mais um ou dois vogais dos eleitos pela Assembleia da República passarem a regime de tempo integral, o que não aconteceu até hoje.
(c) Competências
Só um orçamento adequado às competências do conselho é aceitável. Na minha perspectiva, algumas dessas competências devem ser alargadas. Ao nível da nomeação de juízes e avaliação de desempenho, não se verificam grandes diferenças formais entre o CSM e o CGPJ, uma vez que têm atribuições em termos de nomeação, colocação, transferência, promoção e regime de disciplina. A diferença substantiva nesta área relaciona-se com a disponibilidade de recursos.
O CGPJ apresenta ainda competências ao nível da selecção e formação dos magistrados judiciais que anteriormente cabiam ao executivo. Assim, a Escuela Judicial foi transferida para o Conselho, configurando-se como um órgão técnico daquele. No caso português, o Centro de Estudos Judiciários é o responsável pela formação profissional de magistrados judiciais, estando sob a dependência do Ministério da Justiça. O CEJ tem uma certa influência no CSM uma vez que do seu corpo docente fazem parte magistrados judiciais destacados em comissões de serviço de três anos renováveis cuja escolha é feita por indicação do CSM. Nesta área parece-me adequado que o CEJ estivesse de forma mais funcional dependente do CSM num modelo semelhante ao CGPJ.
Os conselhos judiciários portugueses podem estudar e propor ao Ministro da Justiça providências legislativas que permitam uma maior eficiência e aperfeiçoamento das instituições judiciárias e jurisdição administrativa e fiscal.
No entanto, tais tarefas só podem ser cabalmente cumpridas com um apoio técnico e um orçamento que não estão disponíveis. O CGPJ exerce funções consultivas, no sentido de informar projectos-lei e disposições gerais do Estado e Comunidades Autónomas que afectem o poder judicial e, apesar de não ter poderes legislativos, pode desenvolver regulamentos que tenham a ver com a governança judicial, nomeadamente ao nível do seu pessoal, organização e funcionamento. Espera-se que o CSM possa desenvolver tarefas semelhantes se para isso forem disponibilizados os recursos necessários.
(d) Politização e Partidarização
A composição e tipo de nomeação dos membros dos órgãos de governança da magistratura judicial propostas poderão criar uma eventual politização e partidarização destes órgãos. Evidentemente que a politização do conselho dependerá das competências que tem (competências mais extensas atraem maior atenção política) e da composição e nomeação. Contudo, a politização não só é inevitável como não é necessariamente negativa. Não pode um conselho da judicatura com extensas competências ser gerido de forma meramente funcional ou tecnocrática. Maiores competências e autonomia orçamental pedem escolhas e opções que têm de basear-se em preferências individuais dos membros do conselho. A politização resulta naturalmente destas preferências. Se a independência substantiva do poder judicial for garantida de forma efectiva pelos tribunais superiores, essa politização terá impacto onde deve ter (na gestão do sistema judiciário) e não onde não deve ter (no exercício das funções que são reserva absoluta do poder judicial). Outra coisa bem distinta é a partidarização do conselho, isto é, sujeitar a agenda da judicatura a opções partidárias que no fundo pretendem limitar a independência do poder judicial. Ainda é cedo para de forma conclusiva afirmar que o CGPJ está partidarizado. É verdade que os dois últimos anos mostraram um conflito latente entre o CGPJ e o Governo, mas muitas decisões do CGPJ foram aprovadas por unanimidade (por exemplo, no contexto da luta contra a organização terrorista ETA). Na verdade, é bem possível que o CGPJ reflicta bem mais uma dinâmica política semelhante ao nosso Tribunal Constitucional onde o alinhamento partidário possa ser bem mais ocasional mas sempre mediático.
IV. Conclusões
Sendo os conselhos judiciários os órgãos de governança da magistratura judicial, a sua estrutura e organização deverão ser feitas de modo a permitir uma maior eficiência e eficácia ao nível da magistratura judicial, sendo natural que algumas alterações tenham que ser consideradas como resposta a mudanças e evoluções noutras áreas. Num momento de progressiva judicialização da vida pública e partidarização do poder judicial, parece-me importante reflectir sobre a composição, competências, orçamento e politização destas instituições.
Apesar do modelo espanhol não ser um “modelo-óptimo” de conselho judiciário e de ter de haver muito cuidado quando se tentam importar e transplantar modelos de outros países, a verdade é que nesta matéria nos parece um modelo bem mais adequado. Estamos cientes do risco inerente à politização e partidarização no modelo espanhol. Contudo, não nos parece um risco mais grave do que aquele que já corremos com a actual configuração do Tribunal Constitucional.
Em contrapartida, a actual solução em que predomina uma autonomia formal sem recursos efectivos (orçamentais e humanos) para que o conselho judiciário possa exercer as suas competências (não me parece que a nova Lei Orgânica do Conselho Superior da Magistratura venha a resolver esta situação apesar do já habitual optimismo dos comentadores) configura na minha perspectiva um risco muito maior. É um modelo totalmente inadequado à judicialização crescente e inevitável, e por isso mesmo mais perigoso que o modelo espanhol.
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