Potencialidades e riscos da judicialização da política
A judicialização parcial da vida política tem certas virtudes. Em particular, permite evitar abusos dos órgãos políticos e das maiorias contra minorias estigmatizadas ou indivíduos. Nessa medida, a linguagem dos direitos ocupa um lugar importante nas democracias contemporâneas, e o reconhecimento e a protecção judicial desses direitos, apesar de realizados por órgãos não-maoritários, como são os juízes e os tribunais constitucionais, devem ser vistos não como limitações à democracia, mas como garantias para as suas precondições. Portanto, embora não tenha uma origem democrática, o juiz constitucional cumpre um papel democrático essencial, pois é guardião da continuidade do processo democrático.
A justificação anterior de uma judicialização da política se vincula também à importância que têm os direitos fundamentais numa sociedade democrática.
A ideia é que muitos desses direitos são, em primeiro lugar, pressupostos processuais do funcionamento da democracia, pois mal poderia existir um verdadeiro debate democrático se não se garantisse a liberdade de expressão e de mobilização, os direitos de associação, os direitos políticos. A existência desses direitos é pois, um elemento essencial para que a democracia possa realmente ser considerada um regime em que os cidadãos são livres e deliberam para se auto-governar. Entretanto, para que essas pessoas sejam verdadeiramente livres, é necessário também assegurar-lhes condições mínimas de dignidade, que lhes permitam se desenvolver como indivíduos autónomos. Os direitos fundamentais representam então esses bens, considerados indispensáveis para que todas as pessoas gozem da dignidade necessária para serem cidadãos verdadeiramente livres e iguais e autónomos. Nessa medida, esses direitos aparecem também como uma espécie de pressupostos materiais do regime democrático, pois sem cidadãos livres e iguais, mal poderíamos falar de governo democrático. Portanto, se os direitos fundamentais são tantos pressupostos processuais como materiais da democracia, esses direitos devem ser garantidos, independentemente da opinião das maiorias. Nesse contexto, se os direitos fundamentais são, e me perdoem a redundância, fundamentais para a democracia, ao assegurar sua realização, os juízes cumprem uma função democrática essencial.
Em consequência, e utilizando a terminologia sugerida por Luigi Ferrajoli, embora os juízes e os tribunais constitucionais careçam de legitimidade democrática formal, pois não têm origem na vontade popular, o certo é que gozam de uma legitimidade democrática substancial, na medida em que asseguram os direitos fundamentais e protegem a continuidade e a imparcialidade do processo democrático.
Ademais, uma judicialização também parece iniludível quando ocorrem bloqueios no próprio sistema político, que pode, por exemplo, fazer com que ele perca a capacidade de reagir diante de determinado tipo de prática de corrupção, quando essas já se generalizam tanto que fazem parte das regras ordinárias de jogos dos sistemas. Em tais contextos, as intervenções do sistema como um actor parcial externo ao sistema político enquanto tal podem desencadear processos de transformação política que talvez fossem impossíveis dentro do sistema político. Nesse sentido não é em si mesma prejudicial, pois pode ser catalisador que permite renovação democrática da política.
Em terceiro lugar, uma judicialização da política, em especial aquela ligada à luta pelos direitos, pode também funcionar, por paradoxal que pareça, como um mecanismo de mobilização social e política, na medida em que permite dar poder a certos grupos sociais e facilitar-lhes a sua acção social e política.
Não obstante, os riscos de uma judicialização excessiva da vida política são também claros, pois ela pode afectar a consolidação das nossas precárias democracias.
De um lado, ela pode comportar uma sobrecarga do aparato judicial que começa a assumir com dificuldade tarefas que não lhe correspondem totalmente.
Assim, a transferência da resolução de um excesso de problemas aos juízes pode terminar por afectar a própria legitimidade da administração da justiça, que não tem no longo prazo a capacidade de enfrentar tais desafios. E isso ocorre não apenas da quantidade de problemas que o sistema judicial começa a resolver, mas também dos tipos de assuntos, uma vez que na arena judicial pode não ser a mais apropriada para determinados conflitos. Os riscos de erros judiciários são grandes.
Por outro lado, a judicialização pode gerar um contraste entre a justiça visível e protagonista, que decide poucos casos, mas de forma espectacular, enquanto que a grande maioria dos assuntos é decidida por justiça invisível e com tendência à rotinização, que os tramita de maneira ineficiente e parcial.
Rodrigo uprimny yepes, Professor da Universidade Nacional da Colômbia, In Jornal de Angola, Online.
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