sábado, maio 20, 2006

A lei e as questões de consciência

Por , Francisco Sarsfield Cabral, In DN

Os problemas éticos estão na ordem do dia. Por um lado, a moral católica deixou de ser sociologicamente dominante em Portugal, tornando problemáticas velhas certezas. Por outro, os avanços da ciência trouxeram questões novas, sobre as quais não há doutrina formada. Temos agora uma sociedade pluralista, que se ufana de já não viver sob as hegemonias culturais do passado, embora seja duvidoso que não as haja substituído por outras hegemonias mais subtis. Então, dir-se-á, cada um decida consoante entender. A moral é uma questão privada, de consciência, requerendo decisões do foro íntimo de cada um. O que é que os outros, e em especial o Estado, têm a ver com isso?
A verdade é que têm mesmo muito a ver. Tome-se o caso do aborto. Há quem argumente que cabe à mulher, e só a ela, decidir se interrompe ou não uma gravidez. Pois não é a mulher dona do seu próprio corpo? Só que não se trata apenas do corpo da mãe: há uma outra vida em jogo, a do feto. Quem a protege? Daí que uma lei tenha necessariamente de existir, definindo (ou negando) essa protecção - a qual, em boa lógica, deveria ser plena e não arbitrariamente iniciada apenas num qualquer momento após a concepção.
Mas seremos nós proprietários absolutos do nosso corpo? É o que defendem, por exemplo, os adeptos da legalização da prostituição. Desde que não prejudique terceiros, com o meu corpo posso fazer o que quiser, argumentam. Então, por que bulas não é legalmente permitido vender o meu corpo, não apenas para práticas sexuais, mas para tudo - ou seja, vender-me como escravo?
Tal não é admitido, e bem, em nome de uma concepção da dignidade da pessoa humana. A mesma que parece incompatível com fazer da prostituição um negócio como qualquer outro. Mas não é verdade que, nas nossas sociedades plurais, divergem as ideias de cada um sobre a dignidade humana, o valor da família, etc.? Não deveria o Estado ser rigorosamente neutro face a essas diferentes visões daquilo que é o bem?
Essa é a ilusão liberal. Não é possível a um Estado - qualquer Estado - abster-se de ter uma posição substantiva, ainda que limitada, em matéria de valores essenciais. Até porque não tomar posição já seria ter a posição de deixar desprotegidos tais valores.
Por isso o Estado tem de legislar sobre dilemas éticos que se levantam na clonagem ou na procriação medicamente assistida. Os problemas não são apenas de consciência, são também da lei.
Aliás, é curiosa a evolução das opiniões sobre certas instituições legais, como o casamento. Há tempos, era progressista manifestar desprezo pelo casamento, considerado uma instituição burguesa, mera formalidade legal sem valor. Hoje, desde que se trate de pessoas do mesmo sexo, o "casamento" já parece altamente valorizado. Talvez por, em rigor, não ser casamento.
Como preservar, então, a liberdade e o pluralismo se o Estado acaba por impor determinados valores através das leis que publica? Promovendo o debate público prévio sobre os temas de futuras leis. Um debate de natureza ética e não apenas política - um debate sobre valores em que todos possam participar, contribuindo para formar um consenso moral tão alargado quanto possível (dificilmente será unânime). Esse consenso constituirá a base ética de leis que terão sempre de existir.
Ora tal debate não está a acontecer entre nós, numa altura em que a Assembleia da República se prepara para legislar sobre procriação medicamente assistida. Em meu entender, vêm aí disposições lesivas da dignidade da pessoa humana. Por exemplo, na destruição de embriões excedentários. Ou na utilização de esperma de terceiros.
Algumas vozes da Igreja Católica vieram alertar contra tais perspectivas. Mas, aqui como no aborto, as questões não são religiosas - são morais. É verdade que, face ao suicídio, a fé religiosa implica uma atitude específica: para quem tem fé, a vida é um dom de Deus, logo não pode dispor dela a seu bel-prazer. Esse, sim, é um problema ético do foro pessoal: trata-se de uma atitude que não se pode impor por lei aos outros. O caso é diferente no aborto, na clonagem, na prostituição ou na procriação medicamente assistida. Aí está em jogo uma concepção da pessoa que, independentemente de convicções religiosas e no respeito do maior pluralismo possível, a colectividade enquanto tal tem de assumir, como condição para elaborar as leis. Não são meras questões da consciência individual.

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