segunda-feira, novembro 19, 2007

O Estado das Coisas

O novo processo legislativo relativo aos regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas – que passa a incluir os juízes e os magistrados do Ministério Público no regime geral – coloca em perigo a qualidade da nossa democracia, porque afecta gravemente a independência do Poder Judicial e a autonomia do Ministério Público. Este novo regime de carreiras torna os juízes dependentes do poder executivo. Até aqui o Estatuto dos Juízes representava a matriz de garantia de todo o sistema de governação do Poder Judicial. Pretende o Governo que a Lei de Bases da Função Pública seja o regime regra a que ficam subordinados o funcionamento dos tribunais e o Estatuto dos Juízes.
Esta lei viola grosseiramente o princípio constitucional de paridade dos titulares de órgãos de soberania. Os juízes não são funcionários públicos, não podendo ser integrados num diploma de organização da Administração Pública. Os tribunais são órgãos de soberania e os juízes são titulares de um poder soberano, por muito que custe ao sr. ministro das Finanças. Se os demais titulares de órgãos de soberania (Presidente da República, Parlamento e Governo) não foram incluídos, e bem, neste pacote retrógrado, os juízes também não têm de o ser.
O controlo da economia e do défice não pode justificar esta falta de sentido de Estado do titular da pasta das Finanças, que desrespeitando os tribunais ofende o paradigma moderno do Estado Europeu, pondo em causa o regular funcionamento das instituições. O argumento económico não convence nem justifica esta atitude de afronta, porquanto o impacto no Orçamento é insignificante.
O que temos é outra coisa bem mais preocupante, pretendendo-se, de forma encapotada, liquidar, de vez, o Poder Judicial. Tudo parece indicar que este Governo tem uma vontade política determinada em acabar com a justiça independente, isenta e imparcial.
Em todos os países da Europa se vem caminhando cada vez mais no reforço da independência do Poder Judicial e na clara separação de poderes. O mesmo acontecendo com as directivas comunitárias.
Montesquieu, o pai da divisão dos poderes, está em vias de ser morto.
Juízes-funcionários públicos não são compatíveis com uma sociedade civilizada e transparente. A função jurisdicional do Estado completa-se com a independência dos tribunais e com o Estatuto dos Juízes, dignificado, assim se cumprido a Constituição, enquanto criação máxima de organização do poder político do Estado de Direito Democrático. Por isso é que a arrogância deste Governo não pode ir tão longe e destruir os alicerces e os fundamentos constitucionais do Estado. Uma visão jacobina de controlo político da actividade dos tribunais é primitiva e espelha uma falta de conteúdo ético-político. A emulação dos direitos dos cidadãos, negando-lhes uma justiça livre, desfavorece os valores da República.
O exercício do Poder tem limites que são impostos pela divisão dos poderes, sendo útil que cada poder freie o outro, o que só é possível se a independência do Poder Judicial gozar de certas garantias e franquias constitucionais, que tornem invioláveis e impostergáveis estes valores. Esta arrumação constitucional do nosso regime político é rica de mais para ser destruída.
Numa frase admirável, Leonardo Da Vinci ensinou-nos: “Deus entendeu dar uma irmã à lembrança e chamou-lhe esperança.”
Rui Rangel, Juiz, In Correio da Manhã.

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