quarta-feira, janeiro 30, 2008

Discurso do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Ano após ano, no mês de Janeiro, encontramo-nos todos aqui para uma paragem de reflexão sobre o mundo da Justiça e dos Tribunais com o alto patrocínio de Sua Excelência o Presidente da República.
Aquilo que é hoje uma tradição em muitos países da União – a abertura do Ano Judicial – tem para nós, em 2008, um sabor especial: o de se completar, em Setembro próximo, 175 anos sobre a data da instalação e inicio de funções do nosso Supremo Tribunal de Justiça (S.T.J.).
Produto directo da guerra civil que sedimentou definitivamente o liberalismo português, conceptualizado por Mouzinho da Silveira e Silva Carvalho, o S.T.J. só se tornou viável depois das libertações do Porto em 9 de Julho de 1832 e de Lisboa, no ano seguinte, em 24 de Julho. Dois meses decorridos ( logo em 23 de Setembro) o S.T.J. iniciou funções e Silva Carvalho – um dos bravos do Mindelo – era empossado como seu primeiro presidente.
O Supremo é hoje, indubitavelmente, um dos pilares incontornáveis da Justiça portuguesa.
Com um sistema de nomeação dos seus juízes após um apertado concurso de graduação de mérito sob a égide do Conselho Superior da Magistratura – sistema estruturado pela revisão constitucional de 1982 – o S.T.J. tem sido um tribunal de jurisprudência de qualidade, com funções uniformizadoras (que o novo regime de recursos vem potenciar), e rápido a julgar.
Três meses é o tempo médio de julgamento neste Tribunal nos recursos cíveis, criminais e laborais, o que fará dele o Supremo dos vários países da União a julgar mais rapidamente; somente os recursos contenciosos das deliberações do C.S.M. têm um prazo decisório mais longo por força da sua própria estrutura interna.
Nem sequer a subida constante de recursos neste Supremo (subida que já atingiu patamares muito acima dos limites de contingentação tidos por razoáveis pelo C.S.M., principalmente no cível e no crime) alterou a sua fluidez decisória; isso mesmo foi confirmado oficialmente no proémio do Decreto-Lei n.º303/07 recentemente entrado em vigor, e onde se clarifica que a rapidez e decisão recursória não se restringe ao Supremo Tribunal, antes e estende também aos Tribunais de 2.ª instância, ou seja, às inco Relações do país.
No ano de 2007, ora findo, entraram no Supremo Tribunal de ustiça 4674 processos (entre recursos, acções e habeas corpus, endo 2931 no cível, 1342 no crime, 374 no laboral e 27 no ontencioso) tendo sido decididos 4696 e transitando para o ano em curso 1089.
Porque a nova lei sobre recursos cíveis só produzirá efeitos de abrandamento provavelmente dentro de 3/4 anos, a distribuição anual manter-se-á elevada nesta casa, com sequelas perniciosas agravadas pela doença que visita quem já entrou no outono da vida e por um quadro rígido e deficitário de assessores nomeadamente se o compararmos com os quadros de outros países.
Daí que seja urgente uma solução transitória que, a nosso ver, passaria pela repristinação da Lei n.º3/2000 aproveitando a sabedoria e experiência de Conselheiros jubilados e permitiria equilibrar temporariamente o excesso de recursos até que a “dupla conforme” se torne eficaz.
* * * * *
Se os Tribunais superiores decidem rapidamente o mesmo não se dirá do conjunto da 1.ª instância.
Aqui, continua a funcionar a dicotomia entre interior e litoral com a “décalage” demográfica correspondente; mas mesmo no litoral há tribunais que funcionam francamente bem como o conjunto das varas cíveis, das varas criminais, e diversos tribunais de círculo.
Os verdadeiros nós de estrangulamento do Judiciário português situam-se actualmente nos juízos criminais, nos juízos cíveis, nos tribunais de comércio, todos do litoral, e no paradigma falhado da nova acção executiva.
Os juízos criminais defrontam-se com o excesso da pequena criminalidade que a concentração demográfica potencia e, muitas vezes, com a inexistência de instalações suficientes para o escoamento de julgamentos simultâneos; mas nos restantes tribunais, onde esses nós de estrangulamento se manifestam, conflui a mistura explosiva constituída pelas acções de divida formigueira decorrentes da concessão de crédito e por uma acção executiva que, até agora, tem sido um fracasso.
Penso seriamente que é o bloqueio da acção executiva que tem transmitido para os países da União que nos são mais próximos a cor local do Judiciário português; conclusão colhida no Verão/2007 não só do que me foi transmitido pelo nosso Embaixador em Paris (meu amigo e colega de curso) como também por tanto quanto me disse um administrador de um grupo empresarial português com ligações privilegiadas a Espanha.
O relatório da CEPEJ do Conselho da Europa (aqui referido há precisamente um ano) situa Portugal muito bem quanto à morosidade processual, no conjunto da Europa Central e Ocidental, no tocante à litigância nuclear (divórcios litigiosos, despedimentos laborais contestados, homicídios e roubos); a seguir, quando se trata de executar um crédito já definido no âmbito do direito privado (ou seja, quando se trata de executar, na esmagadora maioria dos casos, um crédito pecuniário) o sistema não só não responde como bloqueia.
Quem é credor não quer apenas que lhe reconheçam o crédito; quer que lhe paguem, voluntária ou coactivamente.
É aqui, nesta coactividade que constitui, aliás, um dos marcadores genéticos da norma jurídica, que a acção executiva tem falhado; e ao falhar contagia globalmente todo o Judiciário, como num jogo de espelhos, como se o fracasso fosse afinal do sistema inteiro.
A insolvência ( a antiga falência) não é mais do que uma execução global, ou seja, uma execução destinada a solver todo o património do devedor solucionando a sua crónica iliquidez; daí que algumas distorções do processo falimentar se tenham reproduzido no novo modelo de acção executiva.
De sorte que este paradigma executivo atinge transversalmente juízos cíveis, juízos de execução e tribunais de comércio, a tal ponto que nos podemos perguntar se ele terá condições de sobrevivência a prazo.
De qualquer modo, com as suas grandezas e os seus defeitos, o Judiciário português sustenta-se graças ao labor dos seus juízes.
É aliás, o que parece resultar de um estudo, há pouco publicado, elaborado por uma equipa de especialistas liderada por Nuno Garoupa, da Universidade Nova de Lisboa e inscrito na revista Subjudice, n.º34; comparadas aí as taxas de produtividade de juízes, advogados e funcionários, com as dos juízes sobressaindo nitidamente muito acima das dos restantes, a conclusão a inferir é tão-só a de que os juízes carregam aos ombros como Tântalo o funcionamento do conjunto dos tribunais portugueses.
Conclusão que provavelmente incomodará algumas vozes vocacionadas para corporizar a catástrofe em quem, afinal, menos culpa terá.
Um enquadramento assim mostra bem o erro político que seria funcionalizar estatutariamente o juiz, desvirtuando o bloco normativo que a nossa Constituição confere aos magistrados judiciais como titulares de órgãos soberanos.
* * * * *
A reformulação de alto a baixo do mapa judiciário poderá ser uma alavanca decisiva na eficácia futura dos Tribunais.
Mas permitam-nos, a vol d’oiseau, duas pequenas referências.
A primeira para nos congratularmos com o principio reafirmado na proposta de lei de que a presidência das novas circunscrições aberá a um juíz designado pelo C.S.M.; talvez seja o primeiro passo para se perceber que não só na gestão administrativa mas também na tramitação e marcha do processo há uma relação triangular onde o juiz está para além das partes e não numa situação de simples paridade.
A segunda para relembrar que o administrador das novas circunscrições não pode ser a corporização de Jano das duas caras sob pena de regressarmos aos problemas complicados surgidos na década de 80 e só resolvidos a partir de 2001.
* * * * *
Os Tribunais não abarcam, contudo, toda a Justiça porque esta está para além do Judiciário como é visível, aliás, na linguagem da comunicação social.
Daí que me sinta autorizado a abordar questões outras que tocam à Justiça (e não directamente aos Tribunais) e que se relacionam com a defesa da cidadania do homem comum.
Desde logo a necessidade, cada vez mais sentida, de democratizar a composição dos órgãos de gestão deontológica de profissões com peso social relevante dotando-as de efectiva competência disciplinar.
Refiro-me, à cabeça, às Ordens profissionais; não faz sentido que, exercendo elas funções públicas que lhe são delegadas pelo estado, o estado se demita e se alheie da forma como o poder delegado é exercido.
A composição não corporativa, multifacetada, aberta ao exterior do órgão disciplinar das Ordens profissionais é, por isso, o patamar mínimo de exigência que a cidadania compreende.
Raciocínio este extensivo, aliás, a outras profissões socialmente relevantes que nem órgão de gestão têm: refiro-me aos jornalistas.
Há pouco mais de dois meses, e na sequência de queixa formulada por um juiz deste S.T.J. relacionada com noticias jornalísticas referentes a um acórdão aqui proferido, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social reconheceu a existência de “desrespeito do dever jornalístico de relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade e de violação de direitos de personalidade do queixoso”, terminando porém a sua
decisão por um non liquet porque a lei a mais não permite, como se a condenação platónica fosse, no mundo de hoje, o contraponto aceitável das violações efectivas dos direitos dos cidadãos por órgãos de comunicação de massas.
Em segundo lugar não é admissível que – exigindo a Constituição um concurso de mérito dos juízes para acederem ao Supremo Tribunal – se permita depois que qualquer advogado (independentemente do mérito e da antiguidade) aqui litigue.
O que queremos não é muito; é tão-só um mínimo de qualidade na sequência do que diversos países comunitários fazem (França, Alemanha) e outros não europeus (asiáticos até) que já importaram também este modelo.
É óbvio que um modelo assim requer uma atenção especial à defesa dos fragilizados sociais no âmbito do direito criminal porque, aí, não são pensáveis limitações no acesso ao recurso; o que nos transporta para um sistema com patamares aceitáveis de qualidade e de eficácia compatíveis com a figura, por exemplo, do defensor público, que diversos países avançados já implementaram mas que entre nós continua a suscitar reacções como se estivesse próximo o dilúvio universal.
Por último uma pequena nota relativa à criminalidade grave que, de há bastante tempo, existe no noroeste do país.
Há 12/15 anos, mais de metade das exportações portuguesas provinham do semi-círculo que ia de Viana do Castelo, por Guimarães, Felgueiras, Penafiel, Santa Maria da Feira, até Aveiro.
Com a concentração financeira na capital, o afunilamento, aqui, dos fundos estruturais e a ausência da regionalização todo o noroeste se desindustrializou com a agravante de ser provavelmente a zona do país com maior reprodução demográfica.
O noroeste passou a ter, por isso, gente a mais (nomeadamente gente nova) sem saídas profissionais que foi fazendo a sua “reconversão empresarial” para o sub-mundo do crime de dinheiro fácil; a célebre frase de Daniel Bell, com pouco mais de 20 anos, de que o estado começa a ser grande para os pequenos problemas e pequeno para os grandes problemas parece cair no noroeste como uma luva.
A nova rede de modernas vias rodoviárias do noroeste fez o resto facilitando a deslocação espacial com a maior rapidez; e o Mea Culpa de Amarante (onde se terão conjugado já alguns destes factores) foi o primeiro aviso daquilo que, há época, ninguém descodificou.
O Direito é um regulador social, não é um curandeiro social.
Não se peça, por isso, ao Direito a cura para a qual ele não foi pensado sob pena de entrarmos num equívoco de labirinto interminável.
Luís António Noronha Nascimento
29 de Janeiro de 2008
Retirado do Site do STJ.

Sem comentários: